Por Eduardo Ferrarini
É notável que tanto a Disney quanto Pixar em seus mais recentes trabalhos têm mostrado uma grande preocupação com a representatividade em seus filmes: Valente, Frozen, Divertida Mente, Zootopia, Procurando Dory, Moana, todos protagonizados por representações femininas (humanas, coelhas, peixes e até mesmo emoções). Uma prova da tomada de consciência do estúdio em reconhecer essa importante questão e vê-la ser refletida em seus filmes. E mais curioso ainda é como essa tendência acabou atingindo até mesmo a série Carros neste novo filme.
Não que ele seja protagonizado por uma figura feminina: a história é centrada no Relâmpago McQueen, como no muito bom primeiro filme e ao contrário do pavoroso segundo, concentrado mais em Mate. Com o avanço dos anos, o corredor se torna cada vez mais obsoleto e perdendo espaço para o competidor tecnológico e jovem, Jackson Storm. Após sofrer um grave acidente em uma corrida, McQueen se afasta por meses e se convence que deve retornar às corridas e provar que pode vencer Storm mesmo com a idade, para isso conta com o auxílio da treinadora Cruz Ramirez, que com seu entusiasmo e jovialidade fazem McQueen também refletir sobre seu futuro, que sofre pressão de seu novo empresário Sterling para que se aposente e passe a vender inúmeros produtos com sua imagem estampada (uma autocrítica do estúdio, talvez?).
Não se trata de um roteiro com uma premissa muito original, já que segue a linha de filmes com protagonistas envelhecidos que precisam superar um adversário mais jovem (neste filme, um vilão bem introduzido com um belo plano onde ele passa por cima da “câmera”, porém se revela um vilão genérico e unidimensional), mas nesse sentido o estúdio tem oscilado bastante de qualidade, entregando uma obra-prima como Divirta Mente e uma bomba como O Bom Dinossauro no mesmo ano. E também revelando uma tendência mais caça-níquel do que qualquer outra coisa ao apostar em sequências de seus sucessos (a grande exceção fica por conta da série Toy Story), trazendo até este Carros 3 e investindo menos em histórias originais. Mas assim como os filmes de Toy Story, aqui neste terceiro filme da série ganha um grande peso dramático e trabalha com temáticas mais adultas, como a importância de um legado para si mesmo e para os outros e a discussão sobre o fim das trajetórias pessoais, e até mesmo contemporâneas, como a relação de uma geração velha-guarda com as tecnologias avançadas. Tal dualidade é vista e explorada com bastante química entre McQueen e Cruz, enquanto o primeiro revela uma atitude mais ranzinza e conservadora, a outra já se mostra mais moderna e detentora de uma natureza imperativa, alegre e sonhadora, contrastando de maneira natural com o protagonista.
Aqui, ecoa o caráter mais arrogante e orgulhoso de McQueen visto no primeiro filme e que acaba ao mesmo tempo sendo o combustível (me perdoe o trocadilho) para vencer como também é o caminho para sua possível queda e, como no primeiro filme de novo, precisa ser superada por ele, mas é interessante por se tratar de totais opostos, já que conhecemos McQueen jovem e ambicioso e aqui já visto como um veterano pelos seus colegas e apontado por todos o tempo todo de sua idade avançada, o que parece não apenas ferir seu ego, mas traz questionamentos sobre a posterioridade de quando não poder fazer o que mais ama, o que o torna um protagonista mais complexo e interessante.
Também o que carrega dramaticamente o filme é o esmero técnico da Pixar, que já se tornou um lugar-comum em elogiá-la, mas aqui ganha proporções absurdamente realistas e chocantes que tornam o apontamento inevitável. No acidente ocorrido no início do filme se vê com detalhes minuciosos os amassados, faíscas do atrito no chão de McQueen, construindo um momento visceral e marcante, fazendo com que finalmente o espectador se dê conta do impacto e perigo que aquilo representou para McQueen (talvez uma das cenas mais fortes na filmografia do estúdio). Não se resumindo apenas a isso, como trazendo particularidades fascinantes como o reflexo do capô de um dos carros ou a textura da roda passando em diferentes solos como areia e barro. Há também um competente trabalho de direção de arte, como o minimalismo moderno onde McQueen treina com Cruz, a melancolia acinzentada da pista onde eles encontram Smokey, como também um belo desenho de som, expondo os diferentes ruídos para cada tipo de veículo em variados tipos de asfalto ou solo. Vale ressaltar também como a animação dá uma expressividade grande para os personagens apenas com as “sobrancelhas” dos carros ou com os olhos.
No quesito direção, o estreante Brian Fee faz um trabalho competente na direção trazendo dinamismo nas corridas, posicionando a “câmera” colada nas rodas dos carros (o que me lembrou dos icônicos planos que se tornaram marca registrada da série Breaking Bad) e subjetiva, como na bagunça visual em uma pista em forma de oito onde carros se digladiam. Porém, falta pungência em momentos mais dramáticos, como a corrida que representa o clímax do filme que se revela burocrática e pouca inventiva em sua concepção imagética e em sua montagem.
O roteiro é, particularmente, pouco engraçado (a presença de Cruz é divertida e contagiante, mas não chega a ser totalmente engraçada), o que faz sua força residir nos momentos mais dramáticos (é surpreendente que isso acontece com um filme da série Carros), ainda traz um certo inchaço mesmo com 102 minutos de projeção onde alguns pontos narrativos poderiam ser resolvidos de maneira mais ágil (como o iminente desentendimento entre McQueen e Cruz).
No final das contas, a temática mais madura do filme e ponto forte acaba sendo o arco que diz respeito a Cruz: uma jovem carro (qual seria o feminino da palavra “carro”?), cujas aspirações e impulsos foram reprimidos por todos ao seu redor e sendo uma personagem forte e com atitude, mas que é subjugada pelos carros “homens” justamente por isso, trazendo uma óbvia, porém pertinente, discussão sobre a opressão da figura feminina nos âmbitos de trabalho que, por alguma convenção social, são impedidas de realizarem por causa de uma determinada identidade de gênero ou de nacionalidade. Sim, não acho que a personagem possui um nome latino (Cruz Ramirez) à toa, estabelecendo um paralelo com o cenário social e político de xenofobia e racismo que os EUA vivem atualmente. E de novo, é surpreendente que tal discussão é colocada, mesmo de maneira não explícita e tímida, na série Carros, que nunca pareceu ambicionar estes tipos de ideias, mas exemplifica como o estúdio se mantem a par das mudanças sociais que o mundo vive. Além, claro, de ser também a personagem mais carismática aqui, com seu espírito agitado e seus divertidos métodos de motivação para os carros que treina (particularmente achei divertido como ela pede para McQueen nomear cada uma de suas rodas).
Trazendo um final que, mesmo previsível e antecipado já na metade do filme, é elegante e orgânico e dá um novo vigor à essa série que, particularmente, é a que mais me desagrada do estúdio Pixar e claramente serve de gancho para mais filmes e produtos, mas que nos alegra por mostrar estar na mesma marcha (perdão novamente pelo trocadilho) das reivindicações e mudanças sociais da atualidade.
Ano: 2017