“Temos sido pacíficos demais.” A frase, usada para justificar a rebelião que abalou a cidade de Detroit em julho de 1967, deixa escapar a indignação de um povo que já sofreu muito calado. Mas será que responder violência com violência algum dia vai ser a solução? Por essas e outras, não é fácil escrever sobre um filme difícil como Detroit em Rebelião.
Dirigido por Kathryn Bigelow (a primeira mulher da história a receber um Oscar de Melhor Direção, por Guerra ao Terror), o filme é baseado em fatos reais. A contextualização acontece já na sequência de abertura, que mistura animações a imagens de arquivo para ilustrar a situação problemática histórica que serve como pano de fundo.
Nos anos 60, a segregação racial era um enorme problema nos Estados Unidos (assim como ainda é, em vários lugares do mundo). Os negros eram marginalizados, limitados aos bairros mais pobres da cidade, perseguidos por uma força policial extremamente agressiva. As rebeliões de Detroit tiveram início na 12th Street, depois que diversas pessoas foram presas simplesmente por estarem se divertindo em um clube privado.
Cansada de aceitar calada os abusos de poder dos policiais, a população negra resolveu se rebelar. Logo, as manifestações saíram do controle e se transformaram em depredação dos estabelecimentos comerciais da região, que foram também saqueados. A cidade se tornou uma verdadeira zona de guerra e a polícia recebeu o apoio da guarda nacional para lidar com o estado de calamidade pública.
O longa aborda um acontecimento em especial: o caso do Hotel Algiers. Na noite de 25 de julho, alguns policiais invadiram o local em busca de um atirador, mas, quando não conseguiram encontrá-lo, passaram a aterrorizar as pessoas que lá estavam. O verdadeiro pesadelo de racismo, ódio e violência vivido pelas vítimas do incidente é o que torna Detroit em Rebelião um filme duro de assistir – ainda que necessário.
O elenco é nada menos que extraordinário, passando por Melvin (John Boyega), um segurança de uma loja nas vizinhanças do conflito, que quer apenas seguir sua vida; Carl (Jason Mitchell), o responsável por atrair a polícia, com uma arma de brinquedo e balas de festim; Larry (Algee Smith) e Fred (Jacob Latimore), dois músicos que acabam se vendo no meio da confusão, quando na verdade desejavam apenas se apresentar com sua banda; Greene (Anthony Mackie), um veterano da Guerra do Vietnã que conhece duas garotas brancas no hotel; e Krauss (Will Poulter), o policial que comanda a violência contra os hóspedes do Algiers, para quem a vida dos “delinquentes” não passa de um jogo.
O estilo câmera na mão e a fotografia granulada escolhidos por Kathryn Bigelow dão ao longa um tom documental, como se o público testemunhasse os fatos enquanto eles estão acontecendo, mas é o efeito de “bomba relógio” – que a diretora usa tão bem – o responsável por deixar o espectador ao mesmo tempo angustiado e envolvido na história. A sensação é de que a qualquer momento algo muito ruim vai acontecer a pessoas boas.
“Vou pressupor que todos vocês são criminosos”, são as palavras de Krauss, ao entrar no hotel. Com extrema agressividade, os suspeitos são colocados em fila contra uma parede e passam a sofrer todo tipo de bullying por parte dos policiais. A longa e tortuosa sequência no hotel levanta várias questões. Em um mundo no qual a polícia não existe para proteger, mas sim para ameaçar, onde ser honesto não é garantia de que você não acabe na cadeia, quem pode questionar ou julgar os motivos que causaram as rebeliões?
Em certo momento, um jovem negro chega a chamar o personagem de John Boyega de “escravo”, por querer manter a paz com os guardas brancos. No entanto, sabemos que – ainda hoje, em pleno 2017 – muitas vezes a polícia atira primeiro e pergunta depois. Quando as pessoas são julgadas pela cor da pele, o máximo que muitos negros conseguem é simplesmente sobreviver. O que aconteceu em Detroit 50 anos atrás acontece lá fora, para muita gente, a todo momento – no Brasil, inclusive.
Apesar de séculos de lutas, os direitos civis das minorias continuam ameaçados e, justamente por isso, filmes como Detroit em Rebelião são vitais. Ainda que o longa seja ambicioso demais, em alguns momentos (as duas horas e meia de duração não são suficientes para cobrir todo um contexto histórico extremamente complexo), o poder da direção visceral de Kathryn Bigelow e do roteiro bem amarrado de Mark Boal já valeria o ingresso. Saindo do cinema, de volta a uma realidade não muito distante do que se viu na tela, a pergunta que fica é: “E agora?”
“A mudança está a caminho”, um dos manifestantes brada, no filme. Talvez esteja, embora essas coisas levem mais tempo do que gostaríamos. O filme não é capaz de mudar a história. Os três inocentes assassinados não terão suas vidas de volta e as nove outras pessoas agredidas sobreviveram para ver os criminosos escaparem impunes. Detroit em Rebelião é um filme simples, de vilões e vítimas, que se torna mais assustador pelo fato ser real. Causa desconforto, repulsa, revolta. Quando os oprimidos se rebelam e isso começa a incomodar, pelo menos há uma chance de que eles – finalmente – sejam ouvidos.