Na última imagem de Diz a ela que me viu chorar, a câmera está distante e fixa diante de um quarto de um apartamento. No centro, há uma mulher sentada no chão que está aflita pois não tem notícias de sua namorada. A imagem diz muito sobre o documentário de Maíra Bühler e como ele quebra várias expectativas em relação a retratos de pessoas que usam drogas. Mostrando os moradores de um hotel social situado em uma região de usuários de crack de São Paulo, a realidade dura desse contexto não é apagada. Entretanto, o objetivo do filme não é julgar esses indivíduos, mas demonstrar diferentes facetas de seus cotidianos, indo além da violência e pobreza geralmente focadas. Nessa amplitude, o amor toma a dianteira de maneira intensa. Há sonhos com uma vida melhor, há reclamações sobre as ameaças de outros moradores, porém, mais ainda, há sufocantes histórias de amor, com pessoas cujo maior medo é perder a pessoa amada.

Essas histórias não são rememoradas pelas pessoas filmadas. Elas acontecem em frente a câmera, em tempo real, às vezes até afetando a filmagem, como na cena em que uma mulher empurra o seu parceiro e ele esbarra na câmera. Tempos depois ele volta a tela falando que sente uma dor que está apertando o coração, em meio a lágrimas e reflexões. Um dos registros mais impactantes acompanha um homem conversando com a sua namorada Mara. Ele gradativamente vai perdendo o controle de si quando percebe que sua parceira quer terminar. Com uma voz muito rouca e grave, o homem reclama da falta de reciprocidade e grita com toda força: “eu estou clamando por amor e atenção”. Esses momentos intensos dialogam, de certa forma, com qualquer pessoa que passou por uma situação amorosa semelhante.

Mas é claro que o filme não esconde o contexto dessas vidas. A turbulência dessas relações é causada, em parte, pelas drogas. Dois homens, por exemplo, chegam a reclamar que as mulheres mudam de personalidade rapidamente quando usam drogas. Mas nem todas as dores do coração são causadas por essa realidade. Há sempre uma mescla de motivações.

No geral, a câmera registra diferentes acontecimentos específicos e não somente relatos e rememorações (se desviando do estilo de alguns filmes de Eduardo Coutinho). Assim, observamos, em tempo real, discussões de relacionamentos, pessoas usando crack, gritos e brigas – um homem chega a ficar inconsciente no chão. Em vários desses momentos, a câmera fica no corredor atrás das portas. Ouvimos os gritos e conflitos pelas paredes. É uma forma de estar presente e (parcialmente) ausente. Mas ainda que quase invisível, o peso dessa presença tem o seu impacto.

Ao apostar em um registro que, aparentemente, fez poucas intervenções, a câmera acompanha uma realidade dificil e que é distante para muitos. O uso de drogas parece parte do cotidiano daquelas pessoas, o que, para alguns espectadores, pode despertar a necessidade de uma ação externa. Mas, aqui, o papel da câmera parece não ser o de intervir, mas sim de estar ao lado nos mais diferentes momentos. Nesse processo, diferente é a palavra essencial, pois se as drogas são presentes, outro elemento também é bem comum: a música.

Não qualquer música, mas uma sentimental e visceral. Ouvimos canções de Tim Maia, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Al Green e outros artistas por meio de aparelhos de som ou nas vozes dos próprios moradores. Ao se aproximarem da arte, eles buscam mais um alento para o coração do que uma reverberação da vulnerabilidade social. Essa relação com a música representa as personalidades daqueles moradores e rompe com os limites que qualquer enquadramento externo poderia fazer dessas vidas.

No final, fica a sensação de que cada indivíduo que acompanhamos abriga vários outros eus dentro de si. Em um dia, Benedita fala para sua parceira que quer fica rica com funk. Dias depois, ela comenta que essa música é do diabo e que vai para a igreja. Preservar na imagem essa ambiguidade é uma das forças do documentário de Maíra Bühler, de modo que a própria posição do filme (ou dos assistentes sociais que atuam no hotel) também ganha diferentes camadas.

A ambiguidade dessa posição externa salta aos olhos principalmente nas falas do morador Fabiano. Após uma briga, ele reclama do homem que iniciou a confusão e grita que vocês defendem pessoas erradas. Não é discernido no filme se a pessoa que está discutindo com ele é um agente público ou alguém da própria equipe de filmagem (aliás, esse documentário é daqueles que desperta um enorme interesse sobre o processo de filmagem, já que as realidades em tela são tão intensas e o filme não apresenta como foi o seu fazer). Mas nessa discussão se percebe, bem discretamente, que hora ou outra Fabiano olha para a câmera. Surge o questionamento, quem são esses vocês?

Fabiano não é uma pessoa de classe média que após assistir programas sensacionalistas reclama dos direitos humanos. Ele está dentro de uma realidade violenta e comenta a partir de sua própria situação. Ou seja, a sua fala não é retórica discursiva, é real. Deixar no filme essa questionamento direto demonstra a complexidade dessa realidade, principalmente porque ela pode afetar uma preocupação social que é característica dos movimentos de esquerda.

Mas o filme não é a materialização de um projeto ideológico claramente definido. Ele não quer provar que determinada esquerda é mais humana e coerente, ele quer focar justamente no lado humano daquelas pessoas. Assim, o trabalho não é um documento científico ou didático que demonstra sistematicamente o funcionamento do hotel, mas, ainda assim, apresenta várias situações difíceis que foram transportadas das ruas para aquele prédio. No entanto, justamente por visualizar os vários sentimentos daqueles moradores, uma tristeza nos atinge quando sabemos que o prédio foi desativado, já na gestão Dória. A tristeza final do documentário gera um questionamento: será que os novos governantes vão olhar para essas vidas de maneira ampla, complexa e não determinista, como foi a perspectiva de Diz a ela que me viu chorar? Fica a esperança.

*Esse texto faz parte da cobertura do Cinemascope da 13ª edição da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.

Diz a ela que me viu chorar

Diz a ela que me viu chorar

Ano: 2019
Direção: Maíra Bühler
Roteiro: Maíra Bühler
Gênero: ​Documentário
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: Avaliação