A Igreja Católica é uma instituição milenar que age sob regras igualmente antigas. Uma delas diz respeito ao papa: acredita-se que ele é representante de Cristo na terra e, por isso, exerce o posto em caráter vitalício. Contudo, toda regra tem uma exceção. Durante a Idade Média, quando os papas tinham, digamos, interesses mais mundanos do que religiosos, existiram pelo menos três casos de renúncias papais. A ocorrência mais recente desse fato aconteceu em 2013, quando o Papa Bento XVI anunciou sua renúncia.
Os eventos que antecedem essa fatídica proclamação são o foco de Dois Papas, novo filme do diretor Fernando Meirelles. O cineasta nos leva para dentro das paredes do Vaticano e mostra as intrigas que acontecem no Santo Estado. Honrando o título, a história nos apresenta à dualidade entre Bento XVI (Anthony Hopkins), um bastião da fé conservadora, e o cardeal Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce), popular representante do progressismo cristão, ambos muito semelhantes às figuras reais graças a um primoroso trabalho de maquiagem e perucaria.
Tendo como eixo central uma longa conversa entre os dois personagens, o roteiro se empenha na construção da figura do papa e do então cardial argentino, dedicando mais tempo ao segundo. Bergoglio, por ser mais popular, ganha os holofotes rapidamente. Contada em dois tempos, a trama mescla cenas do sacerdote conversando com o pontífice e flashbacks de sua juventude portenha.
Para marcar tais transições, Meirelles retrata o passado como um filme da era clássica de Hollywood, com a razão de aspecto menor e fotografia preto e branca. Essa reconstituição nos mostra a conturbada Ditadura Militar na Argentina e o início do movimento Mães de Mayo. Tal contexto histórico teve um impacto direto na personalidade de Bergoglio e sua atuação nesse período concede ao personagem um caráter humano, que conquista de imediato a estima do público.
Em contrapartida, Ratzinger é retratado como o líder do conservadorismo dentro da igreja Católica. Um homem de cultura elevada e bastante circunspecto. De poucos sorrisos ele é a pessoa diametralmente oposta ao solar Bergoglio. Seu apreço pelas regras e frieza o afasta das pessoas, enquanto o caloroso argentino causa simpatia por onde passa.
Tamanho contraste de ideias é explicitada não só pelos diálogos como também pela oposição de cores. Apesar de usar branco, cor que geralmente representa clareza de ideias, o Sumo Pontífice encarna o apego à tradição. Já o cardeal, que veste preto, tem dentro de si o progresso do saber e deseja a libertação de amarras milenares. Lado a lado, são a própria representação do duplo: apesar de compartilharem a mesma fé, são essencialmente diferentes
Para retratar tamanha disparidade, Meirelles conta com a fotografia de César Charlone, que colaborou em filmes como Ensaio Sobre a Cegueira (2008) e Cidade de Deus (2002). A dupla faz um constante jogo de câmeras, que nos leva em um verdadeiro passeio. Planos abertos são sucedidos por planos fechados e estes, por closes, para então serem substituídos por novos planos abertos. Essas mudanças, ora ágeis, ora lentas, agem em conjunto com a carga dramática de cada cena, ressaltando as atuações em momentos oportunos.
Dessa forma, vemos a grandiosidade do Vaticano em grandes panorâmicas, mas também somos surpreendidos por detalhes em artes sacras. Esse constante alternar de planos conduz o espectador pela mão e o leva a situações nunca vistas pelo olho comum, como a cerimônia do Conclave na Capela Sistina, evento espelhado no início e ao final da trama.
Na verdade, esse tipo de analogia visual permeia Dois Papas. Durante uma tempestade, um raio atinge a cúpula da Basílica de São Pedro ao mesmo tempo em que padres são acusados de pedofilia. Em outro momento, ao saírem para conversar nos jardins do Castelo Gandolfo, Ratzinger e Bergoglio passam por labirintos, quando se veem sem saída, e adentram uma parte selvagem da propriedade, ao tocarem em tópicos espinhosos.
O desenho de som acompanha essas situações e acrescenta a elas um outro nível de significado, seja no canto da cigarra que representa o desconforto de Bergoglio no jardim, seja nos raccords sonoros das cerimônias religiosas.
Assim como o fio que reúne os votos durante a eleição do novo papa, o diretor soube costurar o filme de maneira competente. Ainda que não escape da tradição na forma e de narrações um tanto expositivas, Dois Papas toca nas feridas da Igreja Católica e ainda sim terminar de maneira leve. Muito disso se dá pelo carisma de Pryce e experiência de Hopkins na criação de seus respectivos personagens. A certo momento, ouvimos no filme que “Deus corrige os atos de um papa com os atos de outro”. Sendo verdade ou não, o que temos é uma obra que honra o carisma de Francisco e a seriedade de Bento XVI. Amém.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo