São inúmeras e inevitáveis as comparações entre Duna, a megaprodução dirigida por Denis Villeneuve que chegou recentemente aos cinemas (e à HBO Max nos Estados Unidos), e O Senhor dos Anéis, aclamada trilogia de Peter Jackson cujo primeiro filme, A Sociedade do Anel, completa 20 anos em 2021. Duas produções baseadas em volumosos livros com tramas complexas, elementos fantásticos, universos próprios detalhados, e que muitas vezes foram classificadas como inadaptáveis para o cinema. Na própria contracapa da edição brasileira de Duna, da editora Aleph, há um comentário em destaque do escritor Artur C. Clarke sobre o livro de autoria de Frank Herbert: “Não conheço nada que se compare a este livro, a não ser ‘O Senhor dos Anéis’.”

Mas enquanto Peter Jackson conseguiu transportar a obra de J.R.R Tolkien para as telonas com considerável sucesso, reinventando o cinema de fantasia no início dos anos 2000 e conquistando diversos prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Filme, a primeira adaptação de Duna aos cinemas, em 1984, pelas mãos de David Lynch, foi um estrondoso fracasso que por décadas enterrou quaisquer chances do desértico planeta Arrakis ser visto nas telonas novamente. 37 anos depois, sob grandes riscos para a Warner Bros e a Legendary Pictures, estúdios que bancaram o orçamento de 165 milhões de dólares do novo filme, e ainda diante de um instável momento nos cinemas gerado pela pandemia, Duna ganha mais uma chance como longa-metragem.

A intrincada trama do filme é ambientada em futuro distante, no ano de 10.191, em que a poderosa família conhecida como a Casa Atreides é designada pelo imperador espacial a se transferir para o planeta de Arrakis, o único no universo que é fonte de uma importantíssima especiaria e que é lar do supostamente perigoso povo chamado de fremen. Com isso, o Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), seu predestinado filho Paul Atreides (Timothée Chalamet) e a misteriosa concubina Lady Jessica (Rebecca Ferguson) deixam seu precioso planeta Caladan para substituírem a ambiciosa Casa Harkonnen, rival dos Atreides, na administração de Arrakis, também conhecido como Duna.

Roteirizado por Eric Roth (Forrest Gump – O Contador de Histórias), Jon Spaihts (Doutor Estranho) e o próprio Villeneuve, Duna passa seu longo primeiro ato realizando uma construção de universo que é um espetáculo visual digno de ser apreciado na maior tela de cinema possível. Planos abertos, sets gigantescos e efeitos visuais eficientes apresentam diversos planetas, naves e fortalezas em grande escala numa ambientação lenta, mas necessária, para situar o espectador no rico universo da trama, tomando o claro cuidado de não pecar pela exposição exacerbada. Soluções como o inevitável prólogo, narrado por uma personagem relevante para a trama, a fremen Chani (Zendaya), e até mesmo um “bibliofilme”, que Paul assiste de forma recorrente para aprender mais sobre o planeta em que sua família irá governar, são boas saídas para apresentar as singularidades daquele elaborado universo. A fantástica trilha sonora de Hans Zimmer, que não cansa de se reinventar mesmo fazendo uso de sons que já são quase uma marca registrada do compositor, acompanha a introdução destes exóticos mundos e personagens.

Cenário político estabelecido, assombrosos vilões apresentados, visões e profecias aos montes… é nítida a busca pela fidelidade ao livro de Frank Herbert que Villeneuve e seus roteiristas tiveram ao adaptar o texto das páginas para as telas. Mas se a vastidão daquele universo e seus distintos povos são transportados de maneira visualmente impactante, alguns problemáticos aspectos do livro também permanecem no longa-metragem: quase todos os personagens em Duna são muito distantes. Paul Atreides é uma espécie de escolhido, um príncipe que tem vislumbres do futuro e confusas premonições sobre sua figura messiânica em Arrakis; Leto Atreides é um duque, austero líder de uma poderosa dinastia agora responsável pela administração de um novo planeta; e Lady Jessica, que acaba sendo até uma personagem bem mais emotiva no filme do que no livro, é uma enigmática integrante das Bene Gesserit, um tipo de ordem religiosa e social formada por mulheres de objetivos grandiosos para aquele universo. Todos são tão importantes, sombrios e afetados por suas descendências ou destinos que é difícil gerar algum tipo de identificação ou empatia mais latente com alguma dessas pessoas. Por conta disso, figuras como as de Duncan Idaho (Jason Momoa) e Gurney Halleck (Josh Brolin), mesmo com pouquíssimo tempo de tela, são quase um respiro de humanidade e afeto para o filme em meio a tantos personagens repletos de fardos e grandes responsabilidades.

Além disso, os inúmeros sonhos e visões de Paul sobre o seu nebuloso futuro e, principalmente, sobre Chani, apesar de também corresponderem aos eventos do livro, acabam prejudicando o ritmo da narrativa, prometendo até mesmo sequências de ação que não serão vistas tão cedo. Paul é um personagem extremamente difícil, afetado desde o momento em que foi meticulosamente concebido por sua mãe Bene Gesserit, e Timothée Chalamet é eficaz em refletir as terríveis dúvidas que o assombram ao longo de praticamente todo o filme. Mas o roteiro de Duna passa tanto tempo ilustrando esses pressentimentos e criando uma sensação de perigo crescente àqueles personagens que as expectativas geradas acabam não se concretizando por conta de um motivo que extrapola o âmbito narrativo de Duna.

Porque Duna, na verdade, é Duna – Parte 1. Em uma quase sorrateira jogada de marketing do estúdio, que não comunica que essa era apenas a primeira metade de uma história em nenhum trailer, cartaz ou peça de divulgação, o único momento em que o espectador médio (que não tem obrigação de ficar pesquisando sobre as etapas de produção da obra) é informado de que não verá uma história completa naquelas próximas horas de projeção é justamente nos créditos de abertura do próprio filme. A fragmentação da história, embora completamente compreensível devido à complexidade e tamanho da trama, naturalmente também deixa os principais e mais empolgantes eventos do livro para uma segunda parte, agora confirmada para um longínquo 2023.

Nesta “parte 1”, Villeneuve faz um ótimo trabalho de posicionamento de peças no tabuleiro, preparação de terreno e apresentação de um vasto universo de maneira palatável, instigante na medida do possível, para fisgar a atenção de um necessário público em massa. A personagem de Zendaya, por exemplo, tão explorada pelo marketing de Duna e com tão pouco tempo em cena no filme, é quase um aviso para que o espectador retorne para a sequência se quiser saber quem é de fato aquela mulher de olhos azuis. Mas ainda que parte de uma trilogia, franquia, etc, todo longa-metragem precisa se sustentar sozinho (vide, novamente, cada um dos filmes de O Senhor dos Anéis) e, com uma trama subitamente interrompida após mais de duas horas e meia de projeção, a falta de um clímax que corresponda à grandiosidade da trama apresentada em “Duna – Parte 1” indubitavelmente compromete o resultado final do filme.

Duna

Duna
Ano: 2021
Direção: Dennis Villeneuve
Roteiro: Jon Spaihts, Eric Roth, Dennis Villeneuve
Elenco principal: Timothée Chalamet, Zendaya, Oscar Isaac, Rebecca Ferguson, Jason Momoa
Gênero: ​Ficção científica, Drama, Ação
Nacionalidade: Estados Unidos

Avaliação Geral: 3,5