Fogo é a oxidação de um combustível que exala, entre outras coisas, calor. Uma sensação quente e que se alastra ao toque de algo que permita conduzi-lo. É algo necessário, mas altamente destrutível com algo frágil ao redor. Não à toa, há associação das chamas com amor ou paixão. Do sentimento essencial e potente, que se intensifica, podendo ser domado e permitindo ser útil ou arrasar o que estiver a frente.
Portanto, o título do novo filme de Lee Chang-dong não poderia ser mais apropriado. Baseado num conto de Haruki Murakami, a história acompanha o jovem Jong-su que ao reencontrar a vizinha Hae-mi, eles têm um breve caso até ela pedir para que Jong-su cuide de seu gato enquanto viaja. Quando ela volta, apresenta o jovem rico Ben, que conheceu durante a viagem, para Jong-su, o que abala as relações de todos.
O mais interessante da direção de Chang-dong é a maneira muito calculada em que ele constrói o nível de obsessão do protagonista com seu objeto de desejo e seu antagonista. Jong-su é um aspirante a escritor, mas sem dinheiro e com o pai preso e a mãe distante. Quando seu mundo não envolve Hae-mi, é totalmente melancólico e triste, sem perspectiva alguma de ascensão.
Há um vazio existencial que não é meramente representado por planos longos que mostram Jong-su reflexivo. O diretor cria uma noção muito clara de esvaziamento de sentido em todos e tudo ali, ao trazer, por exemplo, um belo movimento de câmera que acompanha uma dança de Hae-mi diante de um pôr-do-sol, categorizando a ação pela simples destituição de razão.
É um filme de caminhos muito sutis, mas bastante potentes. Numa premissa como essa (triângulo amoroso), poderíamos esperar embates verbais ou físicos entre os dois personagens masculinos pela jovem, mas o que vemos é mais um silencioso atrito que parece se consumir durante o filme e se agravar quando ocorre determinada coisa na história.
Mesmo quando tudo parece desmoronar e enveredar pra violência, o cineasta é muito seguro e consciente para evidenciar a explosão no final, onde sabe que o arco do protagonista se encerra.
Acumulando uma obsessão tanto pela vizinha pelo qual é apaixonado, como também pelo misterioso Ben, do qual em certo momento se refere como um “grande Gastby”. Ben é muito abastado, embora não fique claro qual é sua ocupação e a forma blasé que parece tratar seus amigos, objetos e outras coisas parecem intrigar cada vez mais Jong-su, que fica consumido pelo ciúme da relação próxima de Ben com Hae-mi.
As longas sequências que mostram o protagonista seguindo o rico misterioso aludem também a perseguição do personagem por aquela vida. Sem entender porque Ben vive naquela posição, a angústia de ser um acaso esse jovem ser financeiramente bem-sucedido daquela forma corrói um senso de justiça no protagonista que o faz alimentar durante a narrativa e o aciona a fazer algo.
Chang-dong sabe também construir essa áurea de mistério em Ben, que intriga o espectador a querer entender e saber mais quais são as motivações e origem daquele sujeito, vivido com bastante sutileza e ambiguidade por Steven Yeun (o Glenn de The Walking Dead). Ao confessar seu hobby favorito a Jong-su, num dos momentos raros em que o personagem mais se abre, supomos a natureza perigosa do sujeito.
E que novamente condiz com o título e a narrativa do filme, que usa da obsessão e paixão como combustível para alongar um incêndio que mais destrói as pessoas em torno dali do que esquentar suas esvaziadas vidas.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.