Era uma vez um sonho (2020) é um filme norte-americano, baseado no livro autobiográfico de J.D Vence – Hillbilly Elegy e dirigido por Ron Howard, vencedor do Oscar com Uma mente brilhante (2001). O longa-metragem, que teve a sua estreia no Brasil em 12 de novembro de 2020, conta a história da família Vance – um clã disfuncional, caracterizado por ciclos ininterruptos de violência.
A narrativa se constrói simultaneamente em dois períodos diferentes: passado e presente. Enquanto no presente acompanhamos J.D. Vance (Gabriel Basso) estudando direito em Yale – uma das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos –, no passado, somos apresentados à sua infância turbulenta e disruptiva. Aqui entram em cena as performances deslumbrantes de Amy Adams, interpretando Bev – a mãe problemática e viciada em drogas de J.D. Vance, e de Glenn Rose, como Mawmaw – a avó de J.D.
Em meio aos debates políticos acalorados dos Estados Unidos em 2020, o filme lança luzes em problemas contemporâneos de desigualdade social, cultural e econômica que emergiram como pautas centrais nas eleições para presidência do país. É um retrato da classe operária branca norte-americana, situada no sul do EUA, onde prevalece o patriotismo, nacionalismo e os valores ultraconservadores e armamentistas. O filme demonstra os problemas de uma população que sofre com diferentes tipos de opressão: econômica, simbólica, física, social etc. Apresenta de forma clara e objetiva o modo como a instituição familiar desmorona a partir do momento que as condições materiais para reprodução da vida são extinguidas.
D.J. Vance representa o American Dream: um garoto humilde, herdeiro de uma tradição de pobreza familiar, mas que se projeta como a exceção em meio aos seus conterrâneos. Com um tom meritocrático, nele, é depositada toda a esperança para que se interrompa, de uma vez por todas, o ciclo da pobreza.
Durante Era uma vez um sonho , as cenas do passado vão construindo o sentido da história. Do mesmo modo que a infância apocalíptica de J.D., conhecemos também o passado catastrófico de sua mãe e avó. Em contraposição, o presente do protagonista revela os desafios enfrentados por ele, demonstrando como o seu passado, mesmo que distante, ainda insiste em assombrá-lo.
Mesmo com as interpretações brilhantes dos personagens e uma trama rica em cenas conflituosas e perturbadoras, o roteiro parece construir uma ideia problemática de família. Ou seja, apesar de todos os obstáculos enfrentados pelo protagonista, de toda violência familiar enfrentada em sua infância, parece ser a própria família, ou melhor, o núcleo familiar que triunfa e concede as rédeas para o sucesso de J.D. Vance.
Aqui, precisamos lembrar que mesmo com todos os desafios impostos ao garoto, J.D. Vance é um homem branco e heterossexual. Assim, percebemos o tom de ingenuidade da história, com um pouco de romantização hollywoodiana, uma vez que sabemos que para indivíduos subalternizados a concepção de família e o próprio direito à mesma é, muitas vezes, negado de saída.
Era uma vez um sonho oferece um cenário para se pensar as relações familiares e a própria instituição família. É um filme emocionante, apresentando conflitos reais e diálogos perturbadores, que desembocam em uma história complexa, mas com farpas de melodrama.