Muito antes de Rolling Stones, Beatles ou Elvis Presley o espírito do rock’n’roll já existia no universo musical e com um outro tom de pele. Na verdade, o rock tem como base justamente a música negra como jazz e o blues que já eram chamados de “coisa do diabo”. Isso pode ser visto em Estados Unidos vs. Billie Holiday. O filme conta a trajetória da cantora de jazz, não desde sua infância, como é tradicional em biografias, mas desde que ela lançou uma canção chamada Strange Fruit que descreve o linchamento de uma pessoa negra por pessoas brancas. A música incomodou o governo estadunidense que passou a perseguir a cantora para impedir que ela cante esta música e evitar que ela se torne uma espécie de símbolo para a população.

Mas o que nós estamos chamando de “espírito do rock” aqui? Bem o estilo surgiu da mistura de estilos originalmente negros, conforme já dito, e usado como forma de ir contra os valores de uma sociedade que tinha acabado de sair da Segunda Guerra Mundial. Um evento que marca fortemente o surgimento desse gênero foi Elvis Presley se apresentando e rebolando na TV. Depois dele, vieram outros como Beatles e Stones nos anos seguintes, e se tornaram a cara (branca) do gênero. Sempre cercados de polêmicas, uso e abuso de drogas que chocaram a sociedade conservadora e foram a trilha da contracultura.

Bem antes disso, esse espírito já estava presente em Billie Holiday (a cantora morreu em 1959 e Elvis deu essa rebolada em 1956). Para começar ela era uma mulher negra fazendo sucesso em um Estados Unidos ainda mais racista do que o que existe hoje em dia, dona de uma beleza e voz sem igual. O seu canto foi o refúgio que a salvou de uma vida ainda mais trágica, depois de uma infância tão problemática. No filme, Billie é interpretada por Andra Day que também é cantora na vida real. Aliás, ponto para essa interpretação que muitas vezes é o que carrega o filme nas costas.

Uma relação conturbada com as drogas, que seria um dos clichês do rock nas décadas seguintes, quase a derrubou e foi uma das desculpas que o governo americano encontrou para poder persegui-la. A tal da guerra contra as drogas, que inclusive a gente assiste muito no Brasil atualmente, nas tardes da TV aberta com um cara de terno gritando contra a população periférica e majoritariamente negra. Essa guerra era a desculpa perfeita para tentar fazer com que ela se cale.

Mas por que eu gastei bastante texto falando sobre todo esse cenário musical e social? A razão é que, infelizmente, o filme não consegue dar conta de toda essa carga que a vida e obra da cantora carrega. Ele consegue ilustrar os acontecimentos, mas parece que falta algo mais. Assistimos a muitos fatos, mas falta conseguir cultivar um sentimento maior ou melhor do que simplesmente “veja como as pessoas eram julgadas apenas por serem negras”, que é coisa que a gente já assiste há muito tempo no cinema.

O Estados Unidos vs. Billie Holiday consegue nos mostrar muito bem quem era Billie, como ela era incrivelmente forte. Todas as cenas em que precisamos de uma intensidade em seu personagem nos é entregue. Aliás, ponto para a atuação de Andra Day. Os antagonistas, entretanto, deixam um pouco a desejar. O grande vilão do filme é Harry Anslinger (Garrett Hedlund), um dos chefes do FBI e que tenta impedi-la a todo custo de cantar a tal canção. Mas, o que mais além disso? Os filmes mais interessantes têm antagonistas quase tão interessantes quanto seus protagonistas. Parece haver um certo desequilíbrio entre a protagonista e os demais personagens.

Um outro filme recente que tem temas parecidos e que consegue fazer isso de uma forma melhor, é Judas e o Messias Negro (2021). Nesse, temos a história do assassinato do líder do grupo dos Panteras Negras por um dos seus membros. Os personagens são desenvolvidos de tal forma em que é possível entender os motivos de cada um e tornar a trama (apesar de já sabermos como ela vai terminar) mais envolvente.

O que funciona de fato em Estados Unidos vs. Billie Holiday é todo o suspense criado logo no início sobre existir uma música que o governo estadunidense não quer que a cantora cante em seus shows. A não ser que você já seja fã de Billie antes e saiba da música (o que não era meu caso), isso desperta uma curiosidade para entender que música seria essa e quais as razões de quererem proibir que ela seja executada. Depois de uma certa parte para frente, o filme tem uma “barriga”. Coisas que poderiam ser contadas a partir de uma montagem rápida, ganham tempo demais de tela nos fazendo querer saber que horas são.

Contudo, quero destacar uma cena trágica e bela ao mesmo tempo que aparece na tela. Em um determinado momento, Billie divide o uso de heroína não só com os membros da sua banda, mas também com nós, os espectadores. O filme embarca num falso plano sequência em que vemos a letra de Strange Fruit ser encenada, misturando com momentos trágicos da vida da cantora. É como se mergulharmos nas dores que a cantora já passou até chegarmos a ela se apresentando para um grande público trajando um belo vestido de festa. Sério, é emocionante.

Existe uma música do Engenheiro do Hawaii que pergunta: “Mas afinal? O que é rock’n roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul? ” referindo-se à características marcantes de dois Beatles John Lennon e Paul McCartney. Depois de conhecer um pouco do gênero e assistir Estados Unidos vs. Billie Holiday é possível dizer nenhum dos dois. O rock existia muito antes de ser chamado rock.

Estados Unidos vs Billie Holiday

 

Ano: 2021
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Suzan-Lori Parks, baseado no livro de Johann Hari
Elenco principal: Andra Day, Trevante Rhodes, Miss Lawrence, Garrett Hedlund
Gênero: ​Drama, Biografia, Musical
Nacionalidade: Estados Unidos

Avaliação Geral: 3,5