Quantas mortes e (re)nascimentos uma mulher é capaz de suportar?
Felicité, indicado do Senegal ao Oscar, apesar de ter sua história ambientada no Congo, é um rico estudo de personagem centrado na figura de uma cantora que luta por sobrevivência.
Abrindo com uma cena carregada de energia, somos introduzidos a uma performance magnética de Felicité (Véro Tshanda Beya Mputu) num pequeno bar. Com uma câmera trêmula, que parece simular o estado quase permanente de embriaguez dos personagens, testemunhamos seus raros momentos de vivacidade quando se encontra com a música.
A trama é disparada quando Felicité recebe a notícia que seu filho, Samo, havia sofrido um acidente de moto e se encontrava em estado grave num hospital público da cidade. Assim, ela parte em uma verdadeira descida vertical ao inferno para tentar salvar sua vida.
O tom documental adotado para acompanhar seus deslocamentos remete à urgência do Dois Dias, Uma Noite (2014), dos irmãos Dardenne, guardadas as devidas proporções e contextos, é claro. No inevitável confronto com seu passado, Felicité descobre, nem sempre da forma mais agradável, que onde há individualismo e conflito de interesses pessoais, pode haver também solidariedade.
Á medida que vamos adentrando a vida da protagonista, tomamos contato, também, com as consequências e o alto preço pago por ter ousado abraçar sua independência. Ambientes pequenos sugerem uma espécie de enclausuramento, como se a possibilidade de fuga jamais se desenhasse para Felicité. Além da predominância da cor verde em muitos cenários, representando a constância da vontade, persistência e a autoafirmação, vistas nessa jornada.
Na segunda metade da projeção, o longa perde o foco e desanda o curso adotado em sua narrativa, quando direciona seus esforços na relação de Felicité com Tabu, um técnico de manutenção, bêbado e mulherengo, que desde o início demonstrava interesse por ela.
Sequências belíssimas e melancólicas da Orquestra Sinfônica de Kinshasa, filmadas em cores frias – tons de azul, cinza e preto -, e inserções de sonhos/delírios noturnos na selva, mais próximos do realismo fantástico, são contrastadas com a expressividade das cenas em que Felicité percorre um lugar que parece não oferecer chance alguma de redenção. Mas ela está disposta a desafiar as previsões e ir ao encontro do sentimento que evoca seu nome.