Não se deve julgar um livro pela capa, diz o ditado. Gabriel e a Montanha tem uma “capa” bonita, sedutora, vendável. Não há como negar.
Fotografado por Pedro Sotero, que vem trabalhando em produções nacionais de destaque não só no âmbito da nossa cinematografia, mas sobretudo no cenário internacional, como Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012), a diversidade paisagística dos países africanos vibra na tela em planos abertos que contemplam diferentes estações e estados de espírito.
Embalado por uma carreira bem sucedida em festivais mundo afora e dois prêmios ganhos na Semana da Crítica de Cannes (de revelação e da Fundação Gan), o filme é baseado no mochilão de Gabriel Buchmann, um economista com futuro promissor que teve sua trajetória interrompida em 2009 quando morreu por hipotermia no Monte Mulanje. O filme, então, acompanha seus últimos 70 dias de vida.
Fica a provocação: será que a história de Gabriel viraria notícia – com intensa cobertura da mídia, diga-se de passagem – e filme, se ele não fosse um jovem abastado?
A trama foi levada às telas por seu amigo de infância, o diretor Fellipe Barbosa (Casa Grande), e o resultado é uma tentativa explícita de heroicizar Gabriel, o que se mostra uma empreitada quase impossível, já que trata-se de um personagem completamente incapaz de gerar alguma empatia.
Road movies, ou filmes que propõe e têm no seu centro jornadas pessoais deste tipo, costumam se ancorar numa busca por autoconhecimento, impulsionada a partir de um dispositivo. Quando partiu para sua viagem à África, com duração prevista de um ano, Gabriel estava “mal”, pois havia ficado na fila de espera de Harvard, e achava constrangedor “estudar a pobreza” (expressão pavorosa e reducionista usada a todo momento no filme) em Los Angeles, onde já tinha uma bolsa integral de doutorado o esperando quando retornasse.
O filme faz um movimento na tentativa de “justificar” esse auto exílio do protagonista, ou fuga como sua namorada se refere, inserindo de maneira forçada a morte de seu pai anos atrás. Mas Gabriel é autocentrado demais para se importar com qualquer coisa ao seu redor que não seja suas metas, seus “dramas” e caprichos, como escalar montanhas não para se conectar com a natureza ou estabelecer uma relação mais profunda de respeito com estes ícones seculares, mas para ganhar tempo, economizar momentos e experiências verdadeiras.
Somente quando Cris (Caroline Abras), sua namorada, entra em cena, que sabemos algo mais consistente acerca do passado do viajante. Ela é, de fato, a única pessoa que tem coragem de expor suas falhas e fraquezas de forma franca e direta. O restante dos personagens, posicionados de maneira condescendente e formulaica na órbita do protagonista, não economizam nos elogios, como se o rapaz fosse uma espécie de presente divino colocado ali no caminho deles. No entanto, o que vemos em muitas de suas interações com os nativos é Gabriel usando seu dinheiro para, literalmente, comprá-los. As falas em off, recurso empregado de maneira pobre e improdutiva durante todo o longa na intenção de reiterar o quão incrível ele supostamente era, não seriam necessárias, caso visualizássemos em suas atitudes tal distinção, o que não é o caso. Sem contar que, obviamente, o mundo externo se mostra bastante amigável e aberto para o protagonista, pelos privilégios que tem por ser homem e poder transitar pelo mundo sem se sentir ameaçado ou vulnerável pelo fato de estar sozinho.
Gabriel, sem filtros, é conservador, prepotente, machista (afinal, quem é o tipo de cara que fala para namorada que ela é rodada?), arrogante (ignora a ajuda e conselhos dos profissionais locais, julgando saber e ser capaz de tudo), não quer ser identificado como turista (declara: “não sou branco, sou brasileiro”) e ganha a fama de “comilão” por uma das famílias que o hospeda, o que se formos pensar em níveis realmente primários de consciência social, é extremamente incômodo.
Ainda que possa atrair num primeiro bater de olhos, Gabriel e a Montanha não iludirá quem estiver disposto a enxergar o personagem por trás do homem e a ação efetiva por trás do discurso.