Todo filme, em certo ponto, é pessoal. Afinal, quando uma obra ganha corpo, o olhar subjetivo do seu criador é algo indissociável na hora de sua feitura. O que é possível cravar é que o novo trabalho de Paul Thomas Anderson, Licorice Pizza (2021), se trata de sua obra mais familiar, digamos assim.
Esta familiaridade se dá não apenas pela escolha do período em que o filme se passa, (anos 1970, sendo que Anderson nasceu em 1970), mas pelo filme estar cercado de figuras que fazem parte da sua vida pessoal e cinematográfica, como a presença de sua companheira amorosa, a comediante Maya Rudolph, em uma pequena ponta no filme. Outra escolha bastante marcante se dá através dos protagonistas, isto é, o casal vivido por Cooper Hoffman (filho de Philip Seymour Hoffman, grande parceiro do diretor e presente em boa parte de seus filmes) e Alana Haim (membro da banda Haim, da qual Anderson assumiu quase como “diretor oficial” dos seus clipes).
A história do filme (com roteiro do próprio Anderson, claro), inclusive, girará em torno dos encontros e desencontros desse casal: Gary (Hoffman), um ator mirim que almeja se tornar rico e famoso e Alana (Haim), uma moça mais velha que também ambiciona voos maiores em sua vida.
Licorice Pizza não se trata de uma trama mirabolante e tradicional de outros romances. Anderson parece mais concentrado na atmosfera daquele período com um olhar esperançoso e carinhoso, algo que muitos compararam com o filme mais recente de Quentin Tarantino, Era Uma Vez em Hollywood (2019), porém, ao contrário de Tarantino, Anderson se atém mais em seus personagens e seus processos do que em referências óbvias de filmes e obras daquele período.
Nesse sentido, o que mais imerge o espectador nos anos 1970 são, obviamente, o design de produção impecável, que consegue remeter com muito cuidado e carinho aos objetos e roupas das pessoas, e também a trilha sonora, que não economiza em usar os maiores artistas de todos os tempos como Paul McCartney, David Bowie, The Doors e Nina Simone.
Não se bastando apenas como uma homenagem nostálgica de Anderson, a força do filme reside principalmente na química e sentimentos estabelecidos pelo casal protagonista. Logo no primeiro encontro deles, há a presença de sentimentos, interesse mútuo, brincadeiras e, principalmente, uma série de projeções que eles criam. “Conheci a mulher com quem irei casar”, diz Gary para seu irmão mais novo, com o qual nutre uma relação bastante afetuosa. É o tipo de fala que já denota a personalidade sonhadora de Gary e isso permeia em toda a sua trajetória no filme.
Alana, mesmo sendo mais velha, não foge muito dessa lógica, também projetando e se imaginando longe da sua realidade e da sua família religiosa (que é vivida pela família real dela, incluindo as irmãs Danielle e Este, que também fazem parte da banda Haim). Ao enxergar um deslumbre de fuga em alguém que parece certo que será bem-sucedido em tudo, Alana passa a acompanhar Gary, mas dificilmente se rende em se tornar sua namorada.
O atrito, a diferença de idade e o magnetismo do casal jamais seria crível se não fosse pelas performances magníficas de Hoffman e Haim, que infelizmente foram esnobados em algumas premiações. No caso de Alana é mais impressionante ainda por ser logo seu primeiro papel em um longa-metragem e ter talento de sobra para carregar o filme. Só pela cena em que tenta dirigir um caminhão sem combustível já a tornaria elegível a todos os prêmios da temporada.
Claro que tudo isso é embalado pelo olhar sempre fascinante de Paul Thomas Anderson, que ao observar seus protagonistas tentarem crescer emocional e financeiramente, consegue aliar uma história que se passa há mais de 50 anos, porém traz questões e temas universais.
Gary é um rapaz que parece sempre atrás do que é moderno, do momento. Algo que ele acredita que mudará as estruturas sociais. Não à toa o personagem investe em colchões de água e pinballs, acreditando que aqueles objetos são o marco maior do futuro, e isso dá um toque de humor, já que vemos o personagem quase que querendo prever um sucesso com aqueles colchões que balançam e transparecem como bolas de cristais revelando nada mais do que incertezas.
Já Alana, em determinado momento, passa a achar a solução do caos do mundo (parte do filme se passa na crise do petróleo dos EUA em 1973) na política, ao se voluntariar na campanha de um jovem candidato (Safdie).
Porém, é claro que os dois não encontraram respostas mágicas para seus receios e questões. O caminho que seguem é apenas correr atrás de algo, o que é perfeitamente representado pela sequência que mostra os personagens se procurando e flashes de outros momentos do filme em que correm são fundidos.
O que se conclui quando Licorice Pizza termina é que tanto nossas vidas, como o Cinema, são elementos que estão sempre à procura de um sentido, de alcançar algo conforme corre. A direção de fotografia do próprio Anderson e Michael Bauman, remetem com suas contraluzes que os sonhos, como o Cinema ou a arte em um geral, são exercícios de se imaginar além da nossa existência. É por isso que o encontro do casal, em um tombão cômico, se dá, obviamente, na frente de um cinema que exibe Com 007 Viva e Deixe Morrer (1973).
É quase como se Paul Thomas Anderson, com o final de seu filme, nos dissesse:
“Nós sempre teremos o Cinema”.