Nossas criações, vinda de familiares biológicos ou não, geralmente são as grandes responsáveis pela nossa personalidade e valores. São delas que retemos o conhecimento e a forma como devemos nos comportar diante do mundo e da sociedade, obtemos noção de tradições ou regras e, assim, criando nossos meios de se relacionar com os outros. Quando uma relação dentro do ambiente familiar parece insalubre e tóxica, ela afeta em muito o psicológico de um indivíduo quando criança, principalmente por ser tão sensitiva e pérvia ao mundo.
Andrey Zvyagintsev com sua mais recente obra, Loveless, parece interessado em explorar como nossas formações em ambientes tão frios e penosos podem ser prejudiciais no futuro, se tornando quase em uma herança passada de geração a geração, num repasse de frieza e agressão ao próximo.
Alyosha (Novikov) é uma criança que faz seu rotineiro e melancólico caminho de volta para casa, olhando a paisagem e jogando uma longa fita amarela sobre uma árvore, querendo prolongá-lo o máximo possível. Isso porque o ambiente em sua casa é absolutamente infernal, já que seus pais Zhenya (Spivak) e Boris (Rozin) estão se divorciando e qualquer tipo de diálogo entre eles culmina em gritos e ofensas, gerando uma tristeza profunda no garoto, que o motiva a fugir de casa, compelindo seus pais e um grupo de pessoas a procurá-lo.
Vindo em seguida do aclamado e ótimo Leviatã , Zvyagintsev concebe ao lado da sua costumeira parceira, Oleg Negin, um roteiro realisticamente cruel, que poderia facilmente ter descambado em um clichê clássico ao usar algum tipo de arco dramático dos pais cruéis que, com o sumiço do filho, percebem o valor da gentileza e amor que nutriam pela família. O cineasta, aqui, se mostra muito mais fascinado em explorar a frieza de seus personagens e como figuras cheias de rancor e mágoa, se comportariam em uma situação dessas.
Zhenya e Boris obviamente se tratam de pais horrorosos e ausentes. Enquanto a primeira não vê problema em chamar o filho de “chorão” na frente de completos desconhecidos e está mais interessada em fofocar em salões de estética, onde se embeleza para o novo namorado, do que em prestar atenção em Alyosha, o outro é um sujeito absolutamente ignóbil, cuja preocupação é ocultar da empresa em que trabalha seu divórcio iminente, dando os primeiros passos para repetir os mesmos erros que cometeu com Zhenya e Alyosha.
Assim, o diretor consegue uma proeza ao nos engajar na busca pelo garoto, mesmo que acompanhando dois indivíduos odiáveis, mas que o roteiro monta de maneira sutil a razão de o serem. Ora, no momento em que eles vão à casa da mãe de Zhenya, testemunhamos uma avó ainda mais deplorável, cínica, incapaz de qualquer tipo de empatia com a filha. Se esta foi a pessoa que cuidou de Zhenya, não havia saída para ela não se tornar a pessoa gélida que é.
Um círculo vicioso prestes a se repetir com Alyosha, que preferiu se jogar no clima congelante da Rússia do que continuar chorando copiosamente atrás da porta ou deitado na cama. O filme é engenhoso ao dar pequenas ações dele, como o já citado andar devagar da escola até sua casa, que é invertido quando ele corre apressadamente para a escola, fugindo daquele mundo inv(f)ernal, que já revelam seu anseio em escapar.
Até mesmo em outros aspectos, como o casaco vermelho de Alyosha, que aparenta ser o único objeto quente, ou mesmo a base secreta dele e seus amigos, um prédio em ruínas e abandonado, exemplificam o belo trabalho da direção de arte em evocar o estado emocional do personagem.
O mais instigante construção de Zvyagintsev é deixar nossas vontades dúbias. Se ao mesmo tempo nos preocupamos com o que pode ter acontecido com Alyosha, por ser uma criança sozinha no meio do frio russo, acabamos também temendo que ao ser encontrado pelos pais, simplesmente volte para aquela vida insuportável, urgindo por amor.
Tememos mais conforme vemos como Zhenya e Boris se comportam diante daquela circunstância. Inicialmente tratando como mais um aborrecimento que o filho deles lhe causaram, seus sentimentos se tornam mais conflitantes, já que eles parecem se obrigarem a irem às buscas, tentando mais assumirem as funções de pais, do que movidos por uma genuína preocupação pelo filho e que vai se tornando cada vez mais em uma culpa calada, onde não conseguem suportar o peso dos dois serem claramente a causa daquilo e se limitando a culparem uns aos outros e negligenciando o garoto.
Procurando refúgios em parceiros diferentes e criando a ilusão de estarem agora em uma vida cheia de perspectivas, Loveless se encerra de maneira absolutamente dolorosa e dura, não oferecendo nenhum tipo de calor esperançoso e revelando a vacuidade de nossa origem poder ter sido apenas o resultado da insegurança de dois indivíduos perdidos que, desiludidos com suas existências, não tem nada a oferecer a não ser sofrimento e desamparo.