Começo esse texto dizendo que não sou iniciada em nenhuma religião de matriz africana, e esse aviso se faz necessário quando falamos de um filme tão enraizado nas suas origens e ancestralidades como M8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019).
O último filme de Jefferson De, que chega ao público 12 anos depois do seu primeiro longa Bróder (2009), entrou no catálogo da Netflix no final de fevereiro, depois de uma discreta estreia em 3 de dezembro do ano passado.
M8: Quando a Morte Socorre a Vida conta a história de Maurício (Juan Paiva) jovem negro que está começando a faculdade de medicina. Com essa simples premissa o público já conseguiria imaginar diversas situações estereotipadas dessa, ainda, dicotomia que é ver um jovem negro em uma faculdade de medicina. Mas o diretor, idealizador do Dogma Feijoada, um manifesto onde deixou claro que o cinema feito por negros e para negros tem tudo menos estereótipos, nos leva em uma jornada que não é vivida somente pelos personagens na tela.
Quando Maurício entra pela primeira vez na sala de Anatomia a câmera subjetiva nos apresenta o novo contexto como se fossemos o protagonista da história. O professor, branco, segue falando sobre Leonardo Da Vinci e ao olhar para Maurício – para nós – acrescenta em tom levemente jocoso “aquele da Monalisa”. Nosso olhar segue para os colegas de turma, todos brancos. Somos lembrados que estamos na aula de Anatomia quando olhamos para os corpos que estão à nossa espera, todos negros.
O desconforto é imediato.
Maurício, filho de mãe solteira, trabalhadora, do terreiro. Importante frisar pois é no terreiro que ele também vai atrás de respostas, por mais que ele não saiba ainda o que perguntar.
Entre as micro agressões do dia a dia na faculdade, o racismo escancarado ao sair de uma festa na casa dos amigos que vivem na Zona Sul carioca, até a desconfiança e repulsa dos seus quando esses se encontram em uma posição que julgam ser “melhores” que Maurício – o jovem passa a se preocupar com aqueles corpos.
Qual origem deles? Por que foram doados para pesquisa? Qual a probabilidade de Maurício se tornar um daqueles corpos um dia?
O título do filme é Quando a Morte Socorre a Vida. O fato de Maurício – vale aqui destacar a presença e atuação de Juan Paiva que com apenas um olhar nos faz sentir tudo que ele está sentindo – estar frequentando esse novo lugar que não lhe era permitido anteriormente não faz com que ele se sinta pertencente, uma vez que os seus únicos semelhantes são os trabalhadores da faculdade, ou os corpos que ele estuda.
A busca por respostas começa no terreiro que frequenta com sua mãe, Cida (Mariana Nunes, também sensacional), mas é na sua mais velha e na luta dela que ele entende a força da sua história, a necessidade de continuar e transformar.
Jefferson De não nos isenta das dores em M8: Quando a Morte Socorre a Vida, mas ele nega clichês. Não existe uma cura, uma desculpa bonita, um pano bem passado para tantas indignações. O filme não fica tentando se explicar, porque não tem explicação.
Maurício encontra forças na sua ancestralidade, na sua fé, nos seus mais velhos… Como tantos de nós fazemos também. Ele entende que a sua vida é maior que o rótulo de cotista, que a piada racista, que o olhar preocupado da moça no ônibus quando ele entra e senta ao seu lado.
Maurício sabe que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, que esses jovens não voltam pra casa, que as suas mães, avós, pais e tios ficam à sua procura, sabendo que a chance de revê-los é mínima.
Uma das últimas cenas do filme é uma das mais dolorosas e bonitas que eu vi recentemente. Jefferson De deixa ‘escura’ a sua marca em M8: Quando a Morte Socorre a Vida, um filme feito para debates que o nosso país segue não sabendo ter.