Com a proximidade da virada do milênio, a sociedade parecia meio confusa sobre as próximas possibilidades. A tecnologia avançava com a chegada da internet ao mesmo tempo que o bug do milênio ameaçava colocar tudo isso em cheque. Na política a Guerra Fria chegava ao fim, o que aumentava a possibilidade de trocas entre nações ao mesmo tempo que profecias de Nostradamus indicavam que o mundo estava prestes a chegar ao seu fim. Os sentimentos gerados pelos acontecimentos desse período refletiram em produções cinematográficas que alcançaram seu ápice no ano de 1999. Surpreendentemente títulos como Clube da Luta, Beleza Americana, Magnólia, A Bruxa de Blair, Quero Ser John Malkovich, 13º Andar, Matrix, entre outros foram lançados no mesmo ano e, cada um à sua maneira, questionavam a realidade e os rumos que a sociedade vinha tomando.
Pensando particularmente em Matrix, a produção misturou misticismo, filosofia, religião e uma estética futurista para questionar os limites da realidade em um mundo que ainda não tinha experimentado realmente o que era viver com a internet. Para além disso, ainda experimentava e acertava em cheio em questões estéticas, com cenas de ação e que dava forma ao que estava sendo filosofado. O efeito bullet time ficou marcado não somente na cena clássica de Neo (Keanu Reeves) desviando das balas, mas extrapolou os próprios limites do filme e diversas outras produções de ação dos anos 2000 utilizaram esse efeito, era quase uma obrigação. Até mesmo Fernando Meirelles utilizou em algumas cenas de Cidade de Deus (2002).
Depois disso, como era de se esperar, foram lançadas mais duas continuações: Matrix Reloaded (2003) e Matrix Revolutions (2003), no mesmo ano com alguns meses de diferença. Os filmes expandem o universo do primeiro mostrando lugares como a cidade das máquinas e Zion o último refúgio da humanidade. Apesar de trazerem questionamentos interessantes, as continuações não conseguiram alcançar o patamar que o primeiro teve de impacto e relevância. Ainda assim, se beneficiavam por uma sociedade que conhecia a internet, mas a via como algo à parte. Um local em que íamos para escapar da realidade no final do dia, talvez. Atualmente é quase impossível pensar uma vida fora das redes. Pedir comida, ir embora após o show, combinar a ida ao cinema, pagar o estacionamento, encontrar um amor, tudo isso passa pelos aplicativos, telas de celulares, tablets e computadores. Esse é um dos desafios de Matrix Resurrections (2021). Explorar as possibilidades do limite entre o real e o digital quando as fronteiras não são tão marcadas quanto antigamente, além é claro, de continuar um trabalho que fez tanto sucesso.
O que o filme aposta primeiro é em confundir nossa cabeça, nós que assistimos aos 3 capítulos anteriores. Em Matrix Resurrections, Neo é um programador de jogos e criador de uma trilogia de sucesso, no caso seria o Matrix, e tudo que vimos acontecer, na verdade seria parte de um jogo de sucesso. A sociedade vive imersa em um mundo digital e passa mais tempo encarando a tela de seu telefone do que em contato com pessoas reais (parece familiar?). Neo parece perceber algo estranho o que lhe desperta algumas crises e que ele controla tomando pílulas com um tom de azul muito forte e com visitas periódicas ao seu analista. Algumas crises do Neo começam a surgir depois que o escritório em que ele trabalha, impõe que ele faça um novo capítulo para o jogo o que o leva a questionar se ele teve foram somente inspirações para a trilogia original ou ele realmente viveu aquilo.
A primeira metade de Matrix Resurrections, em que esses pensamentos ficam circulando e assistimos a uma espécie de “filme dentro do filme” em que temos questionamentos sobre o universo do personagem que é muito parecido com o nosso, a necessidade de haver novas continuações e transformar o trabalho de uma vida em puro entretenimento. Vemos surgir questionamentos dignos do primeiro longa, mas adaptados a nossa realidade da segunda década dos anos 2000. Porém, depois disso as coisas desandam. Apesar de momentos interessantes, de um certo ponto para frente, não existe uma convergência nas ideias que estavam sendo construídas. Resolvido o conflito inicial, a produção caminha para algo estilo bolar um plano para salvar alguém, e o lance de “filme dentro do filme” surge com os próprios personagens citando o efeito bullet time e coisas do tipo. Infelizmente, se transforma em um filme de ação bem genérica.
Keanu Reeves continua sendo a pessoa ideal para interpretar o protagonista e que, recentemente, foi abraçado pela internet e se tornou uma espécie de “entidade”. Tanto que enquanto outros atores como Christian Bale ou Jared Leto fazem dietas mirabolantes para emagrecer ou engordar para entrar em papéis, parece que os produtores apenas dizem: só toma um banho e vem. Há bastante tempo, cabelos longos e barba têm sido o visual adotado por ele na arte e na vida, e isso não é uma crítica negativa. É até estranho vê-lo sem esse visual. O mesmo pode ser dito sobre Carrie-Anne Moss que envelheceu muito bem. Pena que só o carisma dos atores e até de seus personagens, não são suficientes para segurar o filme. Até mesmo novos e interessantes como o Analista, interpretado por Neil Patrick Harris, parecem desperdiçados no meio da história. Baixa também para a nova versão de Morpheus que perde o peso de Laurence Fishburne e ganha uma nova roupagem com Yahya Abdul-Mateen II que até tenta, mas não consegue alcançar o personagem marcante da trilogia original. Fora que o roteiro também não ajuda. Apesar de ser Morpheus, não faz muita diferença se fosse criado um personagem novo para fazer o que ele faz.
Infelizmente, o impacto do Matrix original parece ter ido se diluindo ao longo das suas continuações. Com um início promissor e que caminhava para algo realmente interessante, Matrix Resurrections se perde e acaba se transformando em um filme de ação genérico de uma certa parte para sempre. Talvez fosse mais interessante a produção de algum curta metragem, no estilo Animatrix (2003) que expandia o universo da realidade digital, mas em um formato diferente. Certamente, muito foi algo do próprio estúdio que gostaria de atrair não só os fãs de ficção científica como também os fãs de ação. No fim, não foi nem uma coisa nem outra, ou só metade de alguma coisa.
Matrix Resurrections
Ano: 2021
Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell, Aleksandar Hemon
Elenco principal: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris
Gênero: Ação, Ficção Científica
Nacionalidade: Reino Unido, Estados Unidos, Austrália