A construção do medo é como uma trama delicadamente tecida. No cinema, uma das formas mais eficazes de explorar esse sentimento tem sido apostar em um dos temores primordiais do ser humano: o medo do desconhecido, daquilo que não se vê.
Nesse sentido, o diretor e roteirista Jordan Peele, que se firmou no gênero de terror/suspense com os elogiados Corra! e Nós, tem se mostrado um verdadeiro mestre em surpreender os espectadores com temores que talvez eles nem tivessem se dado conta de possuírem.
Não, Não Olhe! (Nope) se passa em um rancho, no interior da Califórnia, onde são treinados cavalos para participarem de filmes. O longa acompanha os irmãos OJ (Daniel Kaluuya, em uma atuação contida e maravilhosa) e Emerald Haywood (Keke Palmer, também ótima).
Por muito tempo, antes do lançamento, a premissa do filme foi mantida em segredo. O próprio diretor defendia que, quanto menos se soubesse sobre a história, melhor. Por isso, fica aqui um alerta de spoilers.
Basicamente, para salvarem o sítio do pai da ruína financeira, OJ e Emerald tentam capturar em vídeo imagens de um OVNI, que anda sobrevoando sua propriedade. Angel Torres (Brandon Perea) é quem instala o equipamento no local, contando depois com a ajuda de Antlers Holst (Michael Wincott), um cineasta em busca da tomada perfeita. E temos ainda Ricky ‘Jupe’ Park (Steven Yeun), um ex-ator infantil, dono de um parque inspirado no Velho Oeste, que também presencia a aparição.
Esses são os elementos principais de um filme que consegue ser várias coisas ao mesmo tempo: uma homenagem às origens do cinema, um drama familiar, um suspense aterrorizante e um espetáculo de ação e ficção científica, tudo com uma pitada de crítica social — como já seria de se esperar, desse diretor.
O roteiro foi escrito por Peele em um período complicado para a produção cinematográfica: durante a quarentena, na pandemia da Covid-19. O cineasta afirmou que estava muito preocupado com o futuro do cinema e que, por isso, queria criar um espetáculo grandioso (tanto que o longa foi gravado em película, com câmeras IMAX). Ele acreditava que, após tanto tempo em confinamento, as pessoas iriam querer voltar os olhos para o céu… E a ideia de um “milagre ruim” também veio dessa situação.
Com inspirações que vão desde King Kong (1933) até Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e Sinais (2002), passando por Jurassic Park (1993), Peele foi moldando sua declaração de amor ao cinema e às imagens em movimento. A história é, em sua essência, sobre o poder da imagem.
É também, como outras obras do diretor, sobre domesticação. Afinal, OJ treina os animais (e, de certo modo, a criatura misteriosa) não olhando diretamente para eles. Há poucas décadas, nos Estados Unidos ainda segregado, o simples ato de encarar uma pessoa branca, para um negro, podia ser considerado crime.
O próprio clipe do jockey cavalgando, que Emerald diz ser um ancestral da família, é real: uma série animada de fotografias de 1878, que está entre as primeiras captações de imagens em movimento de todos os tempos, chamada Sallie Gardner at a Gallop (ou seja, Sallie Gardner Galopando – Sallie, no caso, era o nome do cavalo). Os jockeys que protagonizaram essa série de imagens, possivelmente negros, de certa forma caíram no esquecimento.
O que o diretor faz, brilhantemente, é criar sua própria versão da história. A originalidade e a precisão técnica já são marcas registradas do trabalho de Peele. Mas, neste filme, ele agrada não apenas aos fãs do horror, enquanto costura lentamente o suspense com relação à criatura no céu, como aos cinéfilos que se sentiam órfãos de uma boa ficção científica. Em determinado ponto, o longa muda de tom e passa a explorar a tensão pela ação — trazendo, em toda a sua glória, o espetáculo que Peele havia imaginado.
Seu maior mérito, no entanto, é apontar a câmera para personagens carismáticos, envolventes e verdadeiros. Afinal, o medo não está no monstro em si, mas nas consequências de sua presença para as pessoas que estão à nossa frente. E, se saímos vivos ou mortos do perigo, é por conta da maneira como reagimos a ele. Por isso, a principal lição de Não, Não Olhe!, muito bem ilustrada pela cena inicial (com o aterrorizante chimpanzé), é que simplesmente não se pode domar um predador.