Os letreiros iniciais indicam o ano de 1972 em Buenos Aires. Um jovem de rosto delicado caminha e fuma um cigarro. Despretensiosamente ele escala o muro de uma enorme casa que avistou. De forma calma, anda pela casa, bebe um uísque ali deixado e rouba algumas joias. Coloca uma música de rock argentino que chega a lembrar das músicas da Jovem Guarda aqui do Brasil e, como se soubesse que estivéssemos testemunhando aquilo, dança.
É assim que se inicia o argentino O Anjo, dirigido por Luis Ortega e representante do país ao Oscar desse ano. Baseado na história verídica de Carlos Eduardo Robledo Puch, que nos anos 1970 cometeu assassinatos e diversos roubos num período de um ano, com apenas de 19 anos. Apelidado de El Ángel Negro, por conta de seus longos cabelos loiros e delicado rosto, acompanhamos justamente esse período de crimes em sua vida, interpretado por Lorenzo Ferro.
Aliás, o diretor Ortega assume uma postura perigosa na narrativa de seu filme, já que por pouco correu o risco de glorificar o rapaz e seus atos. Seja pela forma charmosa como a trilha sonora e o design de produção fazem uma belíssima reconstrução de época da Argentina dos anos 1970 ou mesmo como Ferro interpreta Carlos de uma maneira em boa parte sedutora.
A noção interessante que o cineasta assume é justamente contrastar a delicadeza e beleza estética do rapaz com os terríveis atos que comete. Primeiro é intrigante como Carlos é um sujeito que parece, inicialmente, roubar apenas pelo prazer de conseguir algo que é seu, e não necessariamente por querer dinheiro ou ostentar os objetos. “Gosto de roubar carros, dirigir um pouco e larga-los por ai. Não me preocupo com estacionamento”, diz em determinado momento.
Não apenas na direção de arte que o filme assume, mas Ortega evoca esse choque do belo com o rude ao enquadrar Carlos com um cigarro na boca, por exemplo. A obra traz para discussão a noção que as pessoas inconscientemente têm em mente qual seria aparência ou visual de um bandido ou assassino. E, obviamente, no tipo de sociedade preconceituosa em que vivemos, as pessoas não imaginariam que um rapaz com traços que chegam a lembrar os de Marilyn Monroe poderia cometer os crimes que fez.
Inclusive, o filme traz um comentário que cita justamente as racistas teorias lombrosianas, que diziam haver características típicas de delinquentes. Adivinhe quais eram.
Assim, é sintomático que seu apelido tenha sido “anjo”, por não se enquadrar no padrão de típico criminoso. E Ortega chega a brincar com isso ao trazer o personagem falando na cena inicial sobre ser “um presente de Deus”.
No começo se tratando apenas de um assaltante, as coisas enveredam para atos mais bárbaros com estratégias e planos de assalto. Tudo por conta de sua aproximação com o colega de escola Ramón (interpretado por Chino Darín, filho de Ricardo), que é desenvolvida de forma competente ao trazer os atritos entre os dois, mas o interesse mútuo (quase beirando o sexual) um pelo outro.
Enquanto o caminho de Ramón pelo crime é justificado pela família tóxica e desnaturada que possui, Carlos é quase um peso para seus decentes e honestos pais. Tratando seu fascínio pelo roubo como “algo natural”, sua habilidade nisso é investida pela família de Ramón, culminando nos crimes que deu.
A direção de Ortega é muito feliz ao conceber uma atmosfera que remete perfeitamente o charme dos anos 1970 (seja pelas roupas e figurinos), mas a forma como realiza a mise-en-scène em prol de personagens ambíguos e de caráteres distantes do belo. O cineasta alia bem o estilo com a história de seus personagens, como por exemplo, na forma como Carlos se movimenta na medida da melodia de uma música incidental.
Trazendo performances e um roteiro que envolve de maneira plena, Ortega surpreende ao dar charme e certo humor (como o plano detalhe de certa parte do corpo do pai de Ramón) numa história que poderia muito bem ser aterrorizante, mas também não se tornando algo inócuo e glorificador dos crimes de Carlos. O Anjo atinge um feito quase milagroso e muito certeiro em seu resultado.