Há até pouco tempo atrás, ao assistirmos um filme ambientado em algum estado do Nordeste estaríamos propensos a ver os clichês do chão rachado, esqueletos de animais na estrada, fome e pobreza extrema, tudo isso ocasionado pela seca. O que esse tipo de produção deixou de nos contar é que a região se alterna entre períodos de chuva e estiagem e que sim, desde o meio-norte, passando pelo sertão, o agreste e chegando na zona da mata, tudo se abre em flor com a chegada da chuva.

A recente mudança de perspectiva sobre o Nordeste se deu muito a partir de produções locais que retratam dilemas e histórias universais. A estiagem continua real e ainda afeta a vida dos que ali vivem, mas os 9 estados que compõem a região não se resumem a ela. Muito mais nociva do que a seca é a indústria que lucra com ela, algo debatido em O Bem Virá, documentário de Uilma Queiroz.

O filme parte de uma premissa simples: a foto de muitas mulheres reunidas próximas a um barreiro na década de 1980 na região do Pageú, em Pernambuco. Elas faziam parte das frentes de emergência, iniciativa do governo para gerar emprego e renda e diminuir a fome na região.  Com essa imagem em mãos, a diretora vai em busca das integrantes da foto para conhecer histórias e entender sua participação naquela construção.

Por meio do depoimento de treze mulheres, temos acesso ao contexto histórico da época. Em sua maioria, elas relatam as dificuldades da labuta física, a superação de barreiras para vencer a forme e a presença quase universal de relacionamentos abusivos ou desiguais. Marcadas pelo machismo estrutural, as personagens são em sua maioria viúvas ou separadas e falam com naturalidade sobre abusos sofridos por pais e maridos. A sinceridade crua dos relatos e a frequência com que aparecem, sensibilizam o público e o aproxima da identidade daquelas mulheres sertanejas.

O mosaico de histórias formado por O Bem Virá destaca a luta feminina por melhores condições de vida e a autonomia que alcançam quando conquistam a liberdade financeira, ainda que momentânea. Ao se perceberem capazes de gerir a si e aos seus sem o auxilio de homens – que na sociedade tradicional no interior do Pernambuco nos anos 1980 era o chefe do lar – as personagens relatam uma mudança de percepção catártica.  Os depoimentos mostram essa transformação. Mesmo que muitas não estejam acostumadas a ser ouvidas, as entrevistadas são unânimes em afirmar que a mudança de atitude promovida pelas frentes de emergência foi decisiva para que elas tivessem uma outra postura em relação aos relacionamentos vividos.

Ao destacar o papel da mulher nesta sociedade O Bem Virá tece ainda um comentário político sobre a fome, que atuava como flagelo adicional. Durante décadas o Governo Federal soube das condições climáticas polarizadas da região Nordeste, mas mesmo assim pouco fez. Isso porque a indústria da fome e da seca garantiu mão de obra barata para o desenvolvimento e industrialização de outros estados. Mais aterrorizante do que isso é perceber como o país vai, aos poucos, retornando para o mapa da fome, do qual saiu em anos recentes. A insegurança alimentar hoje volta a ser uma vilã, em um momento onde a força de trabalho torna-se cada vez mais sucateada.

Enquanto documentário, O Bem Virá é simples, mas aos poucos nos envolve em sua narrativa e muito emociona ao dar voz a personagens tão comuns e, por isso mesmo, tão reais. Para que o cinema nunca retorne aos estereótipos regionais nem o Brasil ao patamar da fome, é preciso dar voz a essas pessoas como as mulheres de Pajeú, pois só assim teremos mudanças reais.  Cumprindo um importante papel social, Uilma Queiroz resgata histórias de extrema valia e que muito tem a contar não só sobre Pernambuco e o nordeste, mas sobre a vida.

 

Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope do 10º Festival Olhar de Cinema.  Acompanhe todas as críticas aqui 

O Bem Virá

 

Ano: 2020
Direção: Uilma Queiroz
Roteiro: Uilma Queiroz
Gênero: ​Documentário, Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 4