Devo confessar que comecei a assistir este filme com as expectativas erradas. O Sonho do Inútil, terceiro longa do diretor José Marques de Carvalho Jr, acompanha os ex-integrantes do Inúteis, grupo de amigos cariocas que faziam vídeos caseiros de humor e automutilação para a internet. Algo à lá Jackass, que confesso passar bem longe do que me faz rir. A trupe durou de 2006 a meados dos anos 2010, quando enfim acabou.

No início, eu esperava uma reprodução deste tipo de esquete, entretanto o conteúdo é bem diferente. O Sonho do Inútil é um trabalho pessoal de Carvalho Jr que, utilizando depoimentos e imagens de arquivo, nos apresenta a seu grupo de amigos da infância e adolescência. Aos poucos, o diretor introduz estes personagens comuns que possuem dramas universais capazes de gerar uma forte conexão com o público.

Os depoimentos revelam que os vídeos insanos foram apenas um pretexto para que os jovens ficassem juntos e tiveram um efeito mais importante do que a fama virtual. Morando em uma periferia, os adolescentes estavam suscetíveis às mazelas da nossa sociedade, entre elas o crime, o tráfico e o uso de drogas, apenas para citar algumas. Nesse sentido, o Inúteis funcionou como válvula de escape. As brincadeiras violentas e arriscadas evitavam que aqueles jovens entrassem para a ilegalidade e concedia uma motivação para continuar vivendo.

Aos poucos, o diretor revisita cada um dos amigos e entende o que mudou em suas vidas, resgatando antigos hábitos e fazendo reflexões pontuais. De maneira evidente é possível perceber como a interação entre eles favoreceu o amadurecimento de todos enquanto seres humanos. Ao mesmo tempo, no subtexto, é trabalhada a questão da invisibilidade. O nome do grupo já denuncia o sentimento comum de seus componentes: a sensação de inutilidade. A produção de vídeos revela um desejo latente de ser visto, notado, entendido como um indivíduo. Mas como isso é possível num país estruturalmente marcado por injustiças e preconceitos? Como estabelecer um juízo de valor quanto ao jovem que caminha para o crime quando o sistema trata o corpo periférico como a carne mais barata do mercado? Como se entender cidadão sem políticas públicas afirmativas que atendam a população em vulnerabilidade social e concedam além de dignidade básica, educação, cultura e lazer?

Todas essas questões fermentam na cabeça do público enquanto vemos o destino de cada jovem. Não por acaso, a maioria deles buscou uma forma de arte como maneira de ressignificar a vida: a música, a culinária, o corte de cabelo e o cinema, sendo este último a escolha do diretor, que encontrou na contação de histórias por meio de imagens sua tábua de salvação.

Tecnicamente, O Sonho do Inútil apresenta algumas soluções caseiras e às vezes parece se afastar do objetivo principal ao mergulhar nos dilemas dos ex-membros do grupo, mas estes pontos se tornam detalhes quando compreendido o conceito por trás do filme. Em seu cerne, a produção é um grito de atenção para uma realidade que não admite mais ser tratada como invisível. Carvalho Jr produz um cinema amador, mas não num sentido inferior a outras produções. O cineasta a que assistimos é um apaixonado por cinema, alguém que, como nos diz Maya Deren, “se dedica a capturar a poesia e a beleza de lugares e eventos e, desde que esteja usando uma câmera cinematográfica, pode explorar a vastidão da beleza e do movimento”. E este amor pelo cinema é o melhor que podemos ter ao assistir a um filme

 

Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope do 10º Festival Olhar de Cinema.  Acompanhe todas as críticas aqui 

O Sonho do Inútil

 

Ano: 2020
Direção: José Marques de Carvalho Jr.
Roteiro: José Marques de Carvalho Jr.
Elenco principal: Douglas Santos, Aluã Topeira, Daniel Nascimento, Diego Ald
Gênero: ​Documentário, Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 3,5