“Vão nos assistir viver”. Assim fala uma das personagens do documentário brasileiro Deus tem AIDS, dos diretores Fábio Leal e Gustavo Vinagre. Revisitando preconceitos, medos e temas recorrentes sobre o vírus do HIV, o filme se propõe a dar voz àqueles que historicamente não puderam ser ouvidos. Ter HIV/AIDS por muitos anos soou como sentença de morte, sendo que parte da desinformação sobre o vírus e a doença permanece até hoje. A frase replicada aqui, representa um ato de resistência personificado na fala de Micaela Cyrino, mulher, negra e soropositiva.

Organizado a partir de depoimentos de sete artistas, Deus tem AIDS revista, e desmitifica, tabus enraizados no senso comum brasileiro, entre eles o que diz que o vírus se desenvolveu a partir da promiscuidade dos gays. Com uma montagem afinada, o título alterna entrevistas e performances culturais de maneira a criar uma narrativa coesa. Os personagens são carismáticos, comunicativos e falam sem medo sobre suas questões. A câmera coloca o público numa posição de personagem, dando a impressão de estarmos, na verdade, em uma conversa descontraída com aquelas pessoas.

Essa, inclusive, é a ação de um dos entrevistados. Durante o filme, vemos o ativista Kako Arancíbia levantar um cartaz onde está escrito “vamos conversar sobre HIV/AIDS” em locais públicos. Em seguida, acompanhamos diálogos com todo tipo de pessoas acerca do tema. Na prática, nós, enquanto público, somos aquelas pessoas sentadas no banquinho em frente ao Kako.

Durante 80 minutos os personagens conversam sobre temas comuns a todos: como descobriram a doença, a reação dos familiares ao saberem, situações de sorofobia e assim por diante. De maneira consciente, Deus tem AIDS explicita a desinformação que ainda existe sobre a doença e lança uma reflexão: se avançamos tanto no campo científico, a ponto do tratamento deixar a carga viral indetectável, porque estamos tão atrasados nos estigmas? Porque não há contágio de conhecimento útil que auxilie a diminuir o preconceito?

Não existe resposta única, mas entre as causas os entrevistados destacam a falta de políticas públicas com este objetivo e o risco que correm aquelas que já existem, devido ao (des)Governo Federal. Buscando ainda uma pluralidade, a produção ressalta que a “cara”do HIV no Brasil é o homem branco, cis e gay, destacando que existe um grande número de pessoas que não se enquadram neste perfil. Contudo, o próprio filme recai neste padrão, tendo apenas Micaela Cyrino fora dele.

Ainda que bastante tradicional na forma de apresentar os depoimentos, o longa deixa a cargo das performances artísticas a responsabilidade de surpreender o público. Uma delas, inclusive é bastante explícita e pode gerar uma repulsa aguda no espectador, objetivo desejado pelo próprio ator que a interpreta.

Deus tem AIDS, título este originado de um poema, reforça que hoje, existem duas pandemias assolando o Brasil: a de Covid-19 e a de HIV. Dançando sobre a herança do desconhecido, o filme exorciza medos infundados com conhecimento, apresenta informações necessárias e combate o fantasma do obscurantismo que ameaça as minorias. É necessário e urgente. Merecer ser visto e vivido.

 

Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope do 10º Festival Olhar de Cinema.  Acompanhe todas as críticas aqui 

Deus tem AIDS

 

Ano: 2021
Direção: Fábio Leal, Gustavo Vinagre,
Roteiro: Fábio Leal, Gustavo Vinagre, Tainá Tokitaka
Elenco principal: Carué Contreiras, Ernesto Filho, Flip Couto, Kako Arancíbia, Marcos Visnadi, Micaela Cyrino, Paulx Castello, Ronaldo Serruya
Gênero: ​Documentário, Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 3