A primeira coisa que salta aos olhos ao encontrar qualquer peça publicitária relacionada à nova produção da Netflix O Diabo de Cada Dia (2020) são os atores. Grande parte esteve em filmes marcantes da cultura pop atual em que muitas vezes lembramos mais do personagem do que do próprio nome do ator. Casos como de Sebastian Stan, o Soldado Invernal no universo cinematográfico da Marvel ou Harry Melling, mais conhecido como Duda, o primo insuportável do bruxo Harry Potter. Além de outros como Tom Holland ou Robert Pattinson que já são mais reconhecíveis fora de seus papéis, principalmente pela divulgação das produções que esses atores estão relacionados tentarem conseguir uma publicidade para as mesmas baseada na personalidade dos próprios.
Com isso, o primeiro o primeiro desafio de O Diabo de Cada Dia é conseguir desvincular essa imagem pregressa dos atores de seus respectivos personagens. Boa parte do roteiro já consegue fazer isso por si só devido a seus estranhos acontecimentos envolvendo temas como fanatismo religioso, conflitos armados e masculinidade tóxica. Tudo ocorrido em pequenas cidades do interior dos Estados Unidos, onde o conservadorismo encontra seu ápice entre as décadas de 1950 e 1960.
Em compensação, em casos como o do já citado Tom Holland, ter interpretado papéis como o do ingênuo Peter Parker / Homem Aranha do recente universo da Marvel, faz com que as ações de Arvin Russell, seu personagem aqui, tenham ainda mais impacto. Tom vive em O Diabo de Cada Dia, um personagem tenso, cheio de raiva e com um histórico familiar trágico. Robert Pattinson é o pastor substituto Teagardin, que usa seu papel de missionário para fins próprios e de forma bastante controversa. Pattison, por sua vez, já tinha experimentado viver outros personagens em outras produções para além do universo vampiresco de Crepúsculo fazendo com que não tenhamos o mesmo efeito que em Tom. Seu maior vínculo atual está mesmo no papel principal de The Batman que atualmente ainda está em produção, mas que já mostrou um gostinho num violento trailer recentemente divulgado.
O Diabo de Cada Dia é baseado no romance do escritor Donald Ray Pollock, o Mal Nosso de Cada Dia e é o próprio quem faz a voz do narrador do filme. A história é narrada em épocas diferentes em que acontecimentos distintos com diferentes personagens acabam se esbarrando de alguma forma. O que esses eventos têm em comum é certa paranóia e mal estar surgido no pós Segunda Guerra em que mudanças na sociedade, a liberação dos costumes, a revolução sexual e os horrores da guerra do Vietnã abalam as estruturas da sociedade estadunidense.
A maioria dos personagens, de alguma forma, se vê assombrado pela onda conservadora que surge nesse momento. Instituições como a religião ou o casamento, surgem como tábua de salvação para situações de crise existencial e questionamentos dos acontecimentos da vida. O personagem Willard Russell (Bill Skarsgard), por exemplo, depois de presenciar terríveis acontecimentos na guerra, busca na religião um refúgio para os dilemas que enfrenta após a retomada do conflito. Diferente de correntes como a filosofia, psicologia ou psicanálise que buscam questionar, a religião dá respostas a praticamente todas as perguntas. Além disso, ele utiliza da masculinidade tóxica em forma de raiva, usando a força em brigas, para aliviar pressões sociais. Esse comportamento vai se refletir diretamente na personalidade do seu filho, Arvin que, por sua vez, terá consequências em demais personagens do filme.
Para além do cristianismo presente em O Diabo de Cada Dia, outra definição, dessa vez do universo budista, parece ser presente: o Karma. Os personagens, principalmente os masculinos, recebem quase que na mesma proporção, as ações que causam aos demais a sua volta. Mesmo que estas tenham sido em função de uma divindade. Dor, violência e assassinato retornam a todos que proporcionaram isso a outras pessoas. As mulheres, por sua vez, por mais que estejam envolvidas nas ações dos seus maridos e amantes, parecem ser apenas vítimas dessa ira do universo.
O grande ponto fraco de O Diabo de Cada Dia é a narração. Apesar de ser interessante a ideia de o próprio autor do livro narrar a história, ela surge como uma espécie de muleta para sublinhar ou demonstrar os sentimentos dos personagens. Ela parece querer suprir uma deficiência de direção de não conseguir deixar muito claro isso através da imagem. Ou talvez, a opção foi tentar construir algo estilístico visto se tratar de uma adaptação literária. O fato é que ficou um elemento no mínimo questionável em uma produção potente e que trata de temas tão sensíveis. Temas que, inclusive aparecem na sociedade atual que se vê assombrada por uma nova onda conservadora, mas que, como o próprio filme mostra, vem arruinando-se a partir das suas próprias instituições.
O Diabo de Cada Dia
Ano: 2020
Direção: Antonio Campos
Roteiro: Antonio Campos, Paulo Campos, baseado na obra de Donald Ray Pollock
Elenco principal: Robert Pattinson, Tom Holland, Bill Skarsgård, Haley Bennett, Riley Keough, Harry Melling, Sebastian Stan, Mia Wasikowska,
Gênero: Crime, Drama, Thriller
Nacionalidade: Estados Unidos