Assistir a um telejornal brasileiro sobre as principais notícias diárias do país, principalmente ao longo dos últimos dois anos, tornou-se uma tarefa em grande parte desagradável, muitas vezes revoltante. Não apenas por conta das reportagens sobre o longo cenário pandêmico e suas graves consequências que a todos atingem, mas majoritariamente por conta da inesgotável noticiação de eventos e comentários tão absurdamente inacreditáveis gerados por pessoas que supostamente teriam o papel de liderar uma nação. Pessoas que, na busca por respostas para situações que não podem prever ou controlar, inventam as mais estúpidas e irresponsáveis possíveis soluções.
Não importa muito a língua ou a época, trágicos episódios causados por homens ansiosos para deliberadamente apontar dedos seguem se repetindo ao longo da História. Em O Mauritano, o angustiante e infelizmente raso novo longa-metragem de Kevin Macdonald (O Último Rei da Escócia), é a desastrosa guerra ao terror e a incessante busca por responsáveis pelos atentados de 11 de setembro de 2001 que resultam em deploráveis acontecimentos, como os que inspiraram esta produção, baseada em uma história real.
Adaptada a partir da autobiografia “O Diário de Guantánamo”, de Mohamedou Ould Slahi, a trama mostra como o autor e protagonista passou anos injustamente encarcerado na prisão da Baía de Guantánamo, em Cuba, após ser acusado, sem qualquer tipo de provas, de participar do recrutamento dos terroristas que derrubaram as Torres Gêmeas, em Nova York. Somente muito tempo após o início de seu encarceramento, o homem nascido na Mauritânia passa a contar com a ajuda da advogada de defesa Nancy Hollander (Jodie Foster, vencedora do Globo de Ouro pelo papel) e sua assistente Teri Duncan (Shailene Woodley), que começam a visitá-lo regularmente a fim de buscar maneiras de provar sua inocência e livrá-lo de uma provável pena de morte.
Contada a partir de uma estrutura narrativa fragmentada com muitos flashbacks, marcados pela razão de aspecto reduzida para distingui-los dos eventos mais atuais, a emocionante trama de O Mauritano acaba prejudicada por problemas de ritmo na montagem do filme. O roteiro adaptado por Michael Bronner, Rory Haines e Sohrab Noshirvani, ao tentar retratar muitas fases da vida de Mohamedou em um curto espaço de tempo, acaba interrompendo de forma demasiada o fluxo da história, diversas vezes até incluindo flashbacks dentro de outros flashbacks.
Além disso, a abordagem escolhida prejudica uma série de cenas que deveriam ter um forte impacto dramático, mas que soam apenas rasas e aceleradas, como se servissem apenas para um avanço rápido da narrativa. Um destes momentos ocorre quando a personagem de Woodley toma uma relevante decisão de forma extremamente abrupta após rapidamente ler as páginas de um documento, aparentemente sem oferecer a mínima chance de reinterpretar o conteúdo do material. Em outro exemplo, o promotor militar Stuart Couch (Benedict Cumberbatch), responsável pela acusação que pode levar Mohamedou para a cadeira elétrica, proclama um discurso super patriótico e expositivo a um de seus superiores logo após ser confrontado por novas evidências sobre o acusado.
Estes problemas na execução da trama, no entanto, não tiram o brilho de uma soberba atuação do francês Tahar Rahim como Mohamedou, um dos maiores méritos do filme e que rendeu ao ator indicações ao BAFTA e ao Globo de Ouro. Com um semblante sereno e reações otimistas, mesmo diante da grave situação em que se encontra e de um iminente risco de condenação à morte, Rahim torna ainda mais repugnante acompanhar as chocantes ações de integrantes do exército americano à procura de bodes expiatórios para os atentados – assunto tratado de forma mais aprofundada no recente O Relatório (2019), ótimo longa de Scott Z. Burns disponível na Amazon Prime Video.
A postura calma e relativamente ingênua de Mohamedou, apesar de todo o inexplicável sofrimento causado a ele durante boa parte da produção, comovem pela resiliência do personagem e a brutal diferença de comportamento entre ele e aqueles que teoricamente representam a imaginada “terra da liberdade”. E os créditos finais de O Mauritano são inteligentes ao mostrar que a performance leve e humanizada de Tahar Rahim faz jus ao seu incrível personagem – um inevitável exemplo de força contra a ignorância e a xenofobia neste nosso atual novo cenário de absurdos.