Baseado numa peça teatral de autoria de Oduvaldo Vianna Filho, o novo filme de Jorge Furtado é mais um exemplo de sua preocupação com os rumos políticos tomados pelo Brasil e que, para alguém do viés político dele, assusta. Depois de ter explorado as funções e a importância do jornalismo no doc O Mercado de Notícias (que em parte também é baseado numa peça de teatro), agora Furtado volta a ficção numa história narrativamente mais convencional.
O filme conta a história de Manguari Pistolão (Ricca), um militante de esquerda e que foi opositor da ditadura militar na sua juventude. Agora casado e com uma vida mais ordinária, seu espírito militante é revivido quando vê que seu filho Luca (Suede) se envolve num protesto contra o colégio que não permite algumas vestimentas das alunas, o que revolta a todos. Ao mesmo tempo, Manguari relembra passagens do seu passado (sua versão jovem interpretada por João Pedro Zappa) enquanto entra em atrito com a forma que seu filho quer levar o protesto contra o colégio.
Escolhendo um momento no Brasil muito apropriado para colocar em discussão no cinema (a derrota das esquerdas para a extrema direita), o roteiro se concentra em colocar em contraste a velha e a nova esquerda. Aquela que existia às escondidas por conta dos militares e da ameaça de tortura e morte de quem pensasse diferente, com a nova, que se moldou com acesso a informações e a proliferação da internet como facilitador de comunicação entre minorias e outros militantes.
Nesse sentido, o filme é muito hábil em propor as diferenças e discussões que aqueles atos assumem diante de um novo contexto político. O que é bastante louvável é que o roteiro de Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno enaltece as dificuldades e contradições que certas situações podem provocar e como é mais complexo do que parece.
Em um determinado momento, Luca diz que foi até uma fábrica que é responsável por prejudicar o meio ambiente e convocou para todos que trabalhavam lá se demitissem. “Você pediu para pessoas largarem seus empregos na crise em que vivemos?”, questiona com assombro Manguari. Esse momento por si só já sintetiza o quão laborioso é dar soluções para questões como essas.
Não apenas isso, mas como certas medidas tomadas da velha e jovem guarda se divergem, como por exemplo quando Manguari quer realizar uma petição com os nomes de todos, enquanto Luca é mais imediatista e acredita que partir para a ação e não apelar à burocracia seja mais vantajoso para a causa. Toda a história segue de maneira fascinante e propondo um interessante embate que está longe de ser resolvido.
Também eficiente em sua montagem, como quando as cenas em que os alunos são interrogados pelo diretor do colégio revezam com flashbacks do Manguari e seus amigos sendo interrogados e torturados pelos militares, o que evoca as permanentes consequências, mesmo que sutis, da ditadura militar, que parece sempre querer voltar ao poder.
Estando mais próxima do que nunca para retomar, não é à toa que Furtado queira traçar esse paralelo de Manguari e Luca, já que, infelizmente, vivemos tempos que estão cada vez mais semelhantes.
Vivido pelo sempre competente Marco Ricca, é intrigante ver seu personagem como alguém muito envolvido nas causas de esquerda e que hoje já se mostra calejado por tudo que viveu e ainda testemunha as injustiças que foram presentes na sua juventude. Tanto que sua esposa, vivida por Drica Moraes, se mostra exausta da insistência do marido em querer mudar o mundo, o que é bem ressaltado por Moraes.
Chay Suede se sai bem ao tornar Luca uma síntese do típico homem jovem de esquerda, que embora sempre bem-intencionado, vive numa bolha onde acredita que suas vestimentas ou posts de internet são transgressores. Seu personagem vive um paralelo interessante com o jovem Manguari, vivo por Zappa com talento ao saber reproduzir certos gestos de Ricca e que também alimenta a mesma pretensão de reformar a sociedade.
Vivendo também dilemas que parecem assombrar Manguari até hoje, ele é acompanhado pelos amigos Lorde Bundinha (interpretado com carisma por George Sauma) e Camargo Velho (Anderson Vieira) e que o primeiro chega a se materializar no presente para dialogar com o já velho amigo. As dúvidas e impasses que o protagonista viveu na juventude, se mostram presentes ainda, assim como as esquerdas do Brasil hoje continuam a conviver.
Mesmo apresentando certas incoerências (como flashbacks que não trazem Manguari em cena, o que sabota o conceito da narrativa), Rasga Coração é não apenas uma produção muito bem realizada pela direção e elenco, como uma obra essencial para agregar no debate não apenas dos temerosos rumos que o país está para levar, mas o que se aprendeu com essa derrota de que forma se pode organizar para viver um país mais inclusivo e justo.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.