Soldado, astronauta, náufrago, capitão de navio, piloto de avião, apresentador de TV infantil, boneco de caubói, caubói e contando. Falar sobre a versatilidade de Tom Hanks como ator é chover no molhado, tamanho o repertório e o cada vez mais impressionante currículo de um principais atores das últimas quatro décadas. Desfilando entre gêneros cinematográficos sem nunca parecer “no automático”, mesmo em filmes medianos ou decepcionantes, é muito difícil não se ver envolvido por uma história quando o ator de 64 anos está em cena. Em Relatos do Mundo, seu primeiro filme de faroeste, isto não é diferente.
Segundo filme consecutivo do diretor Paul Greengrass lançado pela Netflix (após o ótimo 22 de Julho), Relatos do Mundo tem sua trama ambientada no sul dos Estados Unidos em 1870, cinco anos após o fim da Guerra Civil que assolou o país. Após lutar no histórico combate, o veterano conhecido como Capitão Jefferson Kyle Kidd (Hanks) decide tentar ganhar a vida viajando entre pequenas cidades americanas lendo jornais e contando aos habitantes locais sobre as últimas principais notícias de suas regiões e do país, cobrando um irrisório trocado pela atividade de sua audiência. É em uma destas viagens que ele se esbarra com Johanna (Helena Zengel), uma órfã de 10 anos criada entre índios por seis anos e que agora se encontra sozinha. Tentado a abandonar a criança à sorte e seguir sua solitária jornada, Kidd por fim aceita a missão de levá-la até seus parentes ainda vivos, iniciando um longo trajeto pelo desértico sul dos EUA.
Com severos traumas em seus passados, o Capitão Kidd e a jovem Johanna estabelecem uma gradual e conturbada relação semelhante a uma paternidade, bastante explorada pelo roteiro por suas diferenças etárias, culturais e principalmente linguísticas, já que a menina entende muito pouco do inglês. E enquanto a contida e surpreendente atuação de Hengel é digna dos prêmios aos quais a atriz mirim vêm sendo indicada, a humildade e determinação do personagem de Hanks como um homem que parece ingerir em sua missão uma chance de redenção por erros do pretérito, além de conferir-lhe um propósito mais urgente do que apenas ler notícias, torna cativante a jornada da inusitada dupla. O crescente entrosamento entre eles rende diversos bons momentos ao longo da trama, com destaque para uma ótima perseguição a cavalo seguido do clássico bangue-bangue inerente ao gênero do filme.
Os perigos aumentam e, à medida em que os dois personagens avançam em direção ao seu destino final, Greengrass recorre com frequência a belos planos abertos sobre as planícies do Texas para ambientar o espectador na imensidão do local. O design de produção de David Crank (Entre Facas e Segredos), por sua vez, confere realismo à história ao construir uma atmosfera movimentada nas diversas pequenas cidades pelos quais Kidd e Johanna passam.
É curioso notar que, apesar da nova função de Kidd, como o guardião da criança, ser um dos pontos de partida do filme, é por conta da costumeira e relativamente enfadonha profissão do personagem, como um leitor público de notícias, que algumas das melhores sequências de Relatos do Mundo acontecem. Divulgando novidades para variadas populações formadas em sua maioria por cidadãos com pouquíssimo contato com os acontecimentos de outras cidades e de seu país, Kidd notoriamente sabe da responsabilidade que tem como um portador da verdade diante de seus ignorantes ouvintes. Em uma destas leituras públicas, por exemplo, ele lê uma determinação do governo relacionada a abolição da escravatura e é imediatamente respondido com protestos pelos habitantes do local, contrários ao fim da escravidão.
Cenas corriqueiras como esta, aparentemente inofensivas, são uma sagaz ferramenta do roteiro de Relatos do Mundo para a realização de breves comentários políticos que se estendem a situações contemporâneas, envolvendo a liberdade de imprensa e o tratamento dado a pautas consideras progressistas. Por isso, apesar do empolgante ineditismo de ver Tom Hanks como um cáuboi em apuros enfrentado inúmeros intempéries, são durante as sequências de suas leituras de jornais os momentos em que mais podemos perceber o zelo e a relevância que o personagem credita ao seu papel, buscando passar informações de forma objetiva, didática, e necessária mesmo diante de assuntos controversos para a época.
Com isso, apesar de uma história relativamente formulaica, em que um solitário personagem mais velho repentinamente torna-se responsável por uma criança de personalidade forte e precisa chegar a um determinado destino com ela, Relatos do Mundo se beneficia de sua carismática dupla de protagonistas e o esmero técnico da produção. E mesmo se o filme não reinventa o cinema faroeste ou faz grandes homenagens ao gênero, é sempre bom assistir a novos diretores e artistas se arriscando, e neste caso, sendo bem-sucedidos, em um formato de filme que já rendeu inúmeras grandes obras.