Toda produção artística enfrenta o dilema forma versus conteúdo, sendo que nas artes visuais esse conflito é mais aparente. No cinema, por exemplo, um bom número de filmes consegue trabalhar as duas vertentes e criar uma experiência verdadeiramente única para o espectador. Entretanto, vários outros mascaram a falta de conteúdo com uma forma pretenciosa, mas igualmente vazia.

Infelizmente, Sem Seu Sangue se enquadra na segunda categoria. Dirigido por Alice Furtado, o longa esteve presente na Director’s Fortnight no Festival de Cannes esse ano. A trama acompanha Silvia (Luiza Kosovski), uma jovem que leva uma rotina apática até que conhece Artur (Juan Paiva), um skatista e poeta nas horas vagas. Os dois têm uma conexão imediata, que desagua em uma relação tórrida, sempre pontuada pela hemofilia* de Artur. É então que o adolescente sofre um acidente e Silvia faz de tudo para tê-lo de volta.

Com frases poéticas e cenas de liberação do desejo feminino, o longa tem uma proposta promissora. Silvia e Artur se comportam de maneiras opostas, o que favorece o relacionamento. Enquanto ele enfrenta a vida com coragem e desatino, ela descobre aos poucos uma saída para a monotonia de sua existência. Mesmo assim, Silvia teme pela saúde de Artur. Aos poucos, parecemos entrar em um romance adolescente, como se estivéssemos lendo o diário da jovem.

Sem Seu Sangue também toca em algumas questões interessantes como a relação do corpo negro com o mar e a proximidade entre a natureza e a sexualidade do casal. Tudo isso é realçado por uma trilha sonora etérea, que desde o começo prenuncia um misticismo latente. Repleto de cenas de sonho, o filme possui um trabalho de iluminação elaborado que ressalta o elemento fantástico nesses momentos.

Entretanto, os pontos positivos param por aí. Se no começo o título entretém o espectador, aos poucos ele vai se tornando desinteressante graças a decisões equivocadas nos elementos narrativos que o compõem. A fotografia, por exemplo, é feita a partir de uma lente bem fechada mostrando os personagens quase sempre em planos médios ou detalhes. Se o recurso é interessante a princípio, aos poucos vai desorientando o espectador, que se vê perdido em vários momentos, por vezes vendo apenas pedaços dos atores. Ainda que essa escolha tenha uma razão narrativa, na prática gera desconforto.

Esse sentimento é intensificado pela montagem. Sem Seu Sangue possui sequências desnecessariamente longas. A impressão é que o editor se apaixonou pelo filme e não conseguiu cortar as sobras (que são muitas). Ainda que o intuito seja estimular a contemplação daqueles momentos ou mesmo gerar repulsa (como na explícita cena da endoscopia), esse estiramento prejudica o ritmo do filme e gera uma barriga, sobretudo no segundo ato.

Quando enfim acontece algo digno de atenção, como a dança ritualística de Silvia, o público já foi engolfado por um torpor intransponível. Esse é o principal deslize do roteiro, que com uma estrutura frágil, acaba por sucumbir diante do próprio peso.  Repleto de diálogos antinaturais, flashbacks expositivos e uma narração que pouco agrega, o texto não consegue cativar o espectador. A sensação é a de assistirmos à uma história cheia de lacunas. Por isso, cenas como a endoscopia de Silvia ou sua conversa com o irmão gay de Artur soam desconectadas e não conseguem cumprir uma função narrativa.

Perdido em si mesmo, o filme lança na tela um excesso de referências que vai desde filmes mudos até religiões de matriz africana, passando por poesia modernista e cultura hindu. O resultado desse caldo mal misturado é um desfecho previsível e decepcionante, que ganha ares de Cemitério Maldito e O Mundo Sombrio de Sabrina quando se propunha a ser algo sério. Em sua busca por reunir forma e conteúdo, Sem Seu Sangue acabou por não alcançar nenhum.

 

* A hemofilia é uma condição que compromete a coagulação do sangue, um processo essencial para a contensão de hemorragias.

**Essa crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Sem Seu Sangue

 

Ano: 2019
Direção: Alice Furtado
Roteiro: Alice Furtado, Leonardo Levis
Elenco principal: Sílvia Buarque, Luiza Kosovski, Lourenço Mutarelli, Juan Paiva
Gênero: ​Drama, Romance
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 2