Há um proposital espaço limitador em Trem das Vidas ou A Viagem de Angélique que parece atritar com as possibilidades fílmicas. Algo que poderia ser absolutamente enfadonho e tedioso, o veterano Paul Vecchiali contorna de maneira muito intriguista ao empregar essa limitação para evidenciar a personalidade e vida da protagonista Angélique (Astrid Adverbe).
Angélique é uma dançarina que em suas viagens de trem tromba com as mais diversas pessoas e que, aqui, acompanhamos a graduação de um relacionamento do seu primórdio até o fim dele e seus frutos. A obra é quase integralmente composta de planos conjuntos que trazem dois personagens sentados um do lado do outro no trem e ocasionalmente vemos a vista da janela do compartimento deles, onde prédios e paisagens passam. Essa dinâmica que Vecchiali cria é curiosa, já que dela ele pode tecer uma inevitabilidade da vida, de situações e pessoas incontornáveis e fora de nosso controle.
Angélique é uma pessoa com desejos impulsivos e que transparece claramente seus anseios e vontades, mas por conta deles e por realiza-los, passa a sofrer consequências, o que a paralisa. Ela lida com aflições e traumas sentada, condenada a permanecer ali, enquanto um trem a leva a qualquer lugar que for. Não há controle dos personagens que vão sentar lá e nem mesmo a câmera parece ter liberdade, já que mesmo quando há mais de duas pessoas e elas estão sentadas na frente uma da outra, não há contra planos para mostra-las sentadas do outro lado para o espectador.
A noção que se tem do tempo e do espaço é feita pela cor do estofado da cadeira onde os personagens sentam, assim, localizando o espectador do lugar e tempo que a história se encontra (em determinado momento eles estão no Japão). Usando com inteligência o figurino, que ora combina e ora conflita com a decoração da poltrona, revelando o estado de espírito de Angélique.
Adverbe sustenta muito bem o filme ao dar bastante intensidade e sinceridade a sua personagem que, impulsionada pelos seus desejos, não deixa de perecer nos ombros de uma amiga alguma fragilidade. Até mesmo Vecchiali dá as caras, ao fazer o pai de Olivier.
Trazendo um final melancólico, que traduz o sentimento de impotência do indivíduo ante a conjuntura da vida e do mundo, Trem das Vidas ou A Viagem de Angélique é uma leitura interessante e ousada não apenas da história de Angélique, mas das nossas mesmas e uma reflexão de quanto controle temos de nossas vivências.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.