Por Mario Neto
O telefone toca, uma voz conhecida atende, logo percebemos que esta pertence a Lambert Wilson, do outro lado da linha alguém diz que tem uma triste notícia, o renomado dramaturgo Antoine d’Anthac, com quem ele trabalhou no passado, vira a falecer, e como último pedido, solicita a sua presença na leitura do testamento em sua mansão. Em uma fusão de imagens o telefone toca novamente e dessa vez quem atende é Pierre Arditi, que recebe a mesma notícia e tem a presença solicitada da mesma maneira, outra fusão, toque de telefone, e agora Anne Consigny passa pelo mesmo processo, o qual será repetido ainda para alguns dos maiores expoentes da interpretação de diferentes épocas, que constituem uma verdadeira constelação de atores franceses, e é dessa maneira impressionante que tem início o mais recente trabalho de um dos mais importantes diretores do cinema pós-moderno mundial, o lendário francês Alain Resnais.
Um a um os atores – personagens (todos mantêm seus próprios nomes) vão chegando na mansão, situada no alto de uma montanha. Depois de se cumprimentarem são recepcionados por Marcellin (Andrzej Seweryn), que os conduz até a um salão em que o testamento será apresentado. Chegando ao local, os atores se surpreendem quando uma tela se abre no meio de um quadro, e nela o próprio Antoine d’Anthac (Denis Podalydés) os saúda, o dramaturgo explica que os reuniu ali pois em algum momento de suas carreiras, todos trabalharam com ele na montagem de “Eurydice” (peça de Jean Anouih baseada no mito grego de Orfeu), por isso necessita da ajuda dos mesmos para avaliar um jovem grupo de teatro, que enviou uma encenação filmada, para que pudessem ter a permissão do dramaturgo de reproduzi-la. Então a projeção se inicia, e não demora muito para que os atores comecem a relembrar fragmentos das falas de cada um dos personagens, no começo essa relação transcorre de maneira acanhada, contudo, em pouco tempo, estão contracenando com o vídeo e com eles mesmos, recriando uma atmosfera nostálgica e metalingüística, até se estabelecer um nível em que passado/presente, realidade/ficção se confundem em um espectro temporal nebuloso.
A temática da memória revisitada para Resnais, não é apenas algo recorrente em toda sua obra, mas sim objeto principal de reflexão do diretor, desde seu aclamado curta/documentário Noite e Neblina (1955) que revisita os horrores do holocausto nos campos de concentração, passando por Hiroshima, Meu Amor (1959), seu primeiro longa-metragem, que trata de um romance acontecendo paralelamente em dois espaços e tempos diferentes, até alcançar o ápice da reminiscência onírica e inconsciente em Ano Passado em Marienbad (1961), seu trabalho mais vanguardista e autoral. Em Você Ainda Não Viu Nada, o fenômeno da rememoração é trabalhado de maneira nostálgica, utilizando o onírico como artifício de sustentação narrativa, fazendo com que os atores-personagens transitem por fluxos imagéticos inconscientes de forma interativa, em diferentes espaços-tempo, revivendo experiências que se confundem entre as deles próprios e a de seus personagens na peça.
A relação teatral pautada na relevância do ator para a obra, não apenas serve para reforçar e legitimar a atuação como aspecto mais fundamental, mas também estabelece uma conexão direta com o roteiro ecoando no desenvolvimento da narrativa. A escolha da peça “Eurydice” como ambiente de plataforma da trama, não foi arbitrária, tendo em vista que a mesma se baseia no mito grego de Orfeu (tema que já fora explorado pelo diretor em Hiroshima, meu amor), algo já mencionado nesse texto, homenageando assim, as raízes da dramaturgia, o teatro da Grécia.
O próprio cenário remete a um palco de teatro, simples, funcional e adequado, composto por pouquíssimos objetos de cena, em que diversas vezes o ator se encontra em um fundo de Chroma key, algo que a direção de arte se encarrega de ponderar, feita de modo sóbrio e conciso, criando uma atmosfera que, novamente, solidifica a figura do ator como elemento mais importante. A fotografia é revestida de luzes diretas, sombras e recortes específicos, concebida para que molde um teor atemporal, causando a sensação de sonho e surrealismo. O design de som é meticulosamente bem trabalhado, feito de maneira sensível para que a delicada e extremamente sinestésica trilha sonora seja inserida estrategicamente. A montagem conduz o roteiro sutilmente, com planos longos, movimentos de câmera e cortes precisos, executados apenas quando estritamente necessário, criando cadência e leveza, porém, é traída pelo excesso de duração do filme, dando por vezes a impressão de ser um tanto arrastado.
Correndo o risco de me tornar pedante e repetitivo, volto a mencionar as atuações, destaque para Sabine Azéma, esposa do diretor, que representa uma Eurydice mais profunda e intensa, e para Mathieu Amalric, que já nos brindou com uma atuação excepcional no tocante O escafandro e a borboleta (2007), e que aqui se mostra compenetrado e complexo simultaneamente.
Alain Resnais nos prova que com seus mais 50 anos de carreira e 90 de vida, ainda tem muito conteúdo para nos fazer refletir e contemplar sobre nossa percepção de vida, lembranças e contextos. O título do filme serve como fagulha para inflamar esse pensamento, algo que o próprio diretor defende, como quando questionado sobre a escolha do nome, respondeu: “O que nós terrestres sabemos com o que acontece na Terra e com nossa visão? Não podemos nem ver infravermelho. Se soubéssemos o que acontece realmente, poderíamos dizer: ‘Você ainda não viu nada’”. Logo, vamos nos sentar e escutar o que o “cineasta da memória” ainda tem pra nos dizer, já que nós ainda não vimos nada.
Vocês ainda não viram nada! (Vous n’avez encore rien vu)
Ano: 2012
Diretor: Alain Resnais.
Roteiro: Alain Resnais, Jean Anouih, Laurent Herbiet.
Elenco Principal: Andrzej Seweryn, Anne Consigny, Pierre Arditi, Lamber Wilson, Denis Podalydés, Sabine Azéma, Mathieu Amalric.
Gênero: Drama.
Nacionalidade: França/Alemanha.
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