Via de regra, um documentário é o gesto concreto da vontade de um diretor em retratar um fato histórico, é a sua tomada de decisão diante de uma realidade. Vez por outra surgem filmes que, não apenas cumprem os requisitos acima, como também se mostram verdadeiros atos políticos, que escancaram situações que não poderiam passar despercebidas. Esse é o caso de Welcome to Chechnya.

Dirigido por David France, o longa nos insere na cruel vivência experimentada por integrantes da comunidade LGBTQ na Chechênia, república que faz parte da federação russa. Sob o governo de Ramzan Kadyrov, colocado no poder por Vladmir Putin, as autoridades chechenas são habilitadas a prenderem pessoas homossexuais, tortura-las e até mesmo mata-las. Isso porque na Rússia não existem leis que proíbam a discriminação da comunidade LGBTQ.

Diante disso, Welcome to Chechnya estrutura sua narrativa a partir de três pilares: depoimentos de vítimas da violência governamental, entrevistas com ativistas clandestinos da Rede LGBTQ russa e imagens brutais da homofobia institucional no país. Com o rosto e a voz alterados digitalmente, es entrevistades do Centro Comunitário de Moscou para Iniciativas LGBTI+ relatam as torturas às quais foram expostes. Muites afirmam que, após terem sido violentamente ferides por policiais, foram entregues para suas famílias com a orientação de que os próprios parentes es matassem, algo possível de acontecer uma vez que a maioria da população é contra relações homoafetivas.

Ao assistirmos os relatos, é possível perceber o frágil estado psicológico des sobreviventes, agravado por anos de comportamentos reprimidos. Tal sensibilidade por vezes extravasa em tentativas de suicídio, registradas no filme e agravadas pelo fato das vítimas não poderem ser atendidas em hospitais por serem procuradas pela polícia.

A certa altura, Welcome to Chechnya ganha ares de filmes de ação e suspense quando acompanhamos a extração de algum membro da comunidade LGBTQ, algo acentuado pela urgência com que o processo deve acontecer. Infelizmente, diferente das ficções, o que vemos ali são pessoas cujas vidas estão realmente em perigo.

Em outros momentos conhecemos a rotina de sobreviventes que conseguiram fugir da Rússia. Contudo, esta realidade também não é leve. A ilos, resta a carga psicológica de viver como refugiades e entender que os antigos sonhos e ambições foram aniquilados por um governo homofóbico e assassino em todas as suas instâncias. Este último ponto é justamente uma preocupação dos ativistas russos, já que a violência praticada na Chechênia está se espalhando para outras partes do país.

Caso ainda não tenha se tornado evidente, vale ressaltar que a produção pode ativar muitos gatilhos para quem é sensível a crueldades. David France expõe na tela cenas de violência explícita para denunciar a violência explícita que está acontecendo. Mesmo esta sendo uma escolha ousada, já que afasta espectadores, é necessária dada a urgência do tema.

Exibido e premiado nos festivais de Berlim, Sundance e Hot Docs, Welcome to Chechnya é essencial, ainda que indigesto. Pela ousadia e coragem de denunciar a tortura contra a comunidade LGBTQ o documentário torna-se não apenas uma lente da realidade, mas também um ato político de inegável poder.

 

*Partes desta crítica foram escritas em linguagem neutra em respeito es membres da comunidade LGBTQ

Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Welcome to Chechnya

 

Ano: 2020
Direção: David France
Roteiro: David France e Tyler H. Walk
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: 4,5