Por Vinicius Gonçalves

Dirigido por Rosemberg Cariry, o longa metragem Os Pobres Diabos toca em questões que autorizam uma reflexão referente ao estado da cultura brasileira atual. O filme conquistou o prêmio TV Brasil de Exibição no 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2013. Na trama, os artistas do “Gran Circo Teatro Americano” estão em turnê. Ao se alocarem na cidade de Aracati no Ceará, a trupe circense terá que lidar com as dificuldades de promover seu espetáculo em uma cidade interiorana. Falamos com o diretor Rosemberg Cariry, e os atores Sílvia Buarque de Hollanda e Chico Díaz, veja como foi!

CinemaScope: De onde surgiu a ideia do roteiro?

Rosemberg Cariry: Na verdade o roteiro do filme surgiu de uma vivência, de uma experiência de criança do interior. Os circos, pequenos circos, pobres e pequenos, chegavam nas cidades e era um encantamento, era uma beleza, uma maravilha, um grande espetáculo. Eu resolvi um dia prestar uma homenagem a esses artistas anônimos para contar a história deles.

CinemaScope: De um modo geral, como foi o processo de criação do filme, ele dá ênfase na coletividade, como isso foi trabalhado na direção e na própria equipe?

Rosemberg Cariry: Na verdade o circo é um ponto de encontro, ou seja, o circo reúne pessoas de diversas vivências, então eu tentei fazer uma comunidade nova. Assim aconteceu no processo de filmagem, nós trocamos experiências e vivências e se deu um processo de alquimia. Uma equipe de filmagem que possa conviver durante 1 mês é de certa forma um microcosmo que reflete os conflitos, os afetos, assim eu compreendi e deixei espaço para o improviso, para a criação. Eu deixei que o próprio grupo se manifestasse, eu acho que nesse aspecto o filme é muito coletivo, ele resulta tanto do pequeno ator do circo que era trapezista quanto dos atores de cinema e televisão. Desse encontro e dessas proposições nasceram ideias e muitas vezes os atores sugeriam coisas, mudavam os diálogos, foi muito bacana. Não era nada fechado.

Sílvia Buarque de Hollanda: A gente tinha uma coisa muito objetiva que era criar a peça dentro do filme, então a gente tinha que ensaiar e isso fez a gente ficar muito junto, muito unido. Não teve tempo de preparação dos personagens porque é um filme de baixo orçamento, o processo foi bem orgânico, mas com Rosemberg sabendo sempre o que ele queria, sinalizando. Eu acho que isso se reflete no filme, às vezes a gente tinha que filmar e depois chegar no hotel e ainda dar uma passada no texto da peça. Tem a tal da história do teatro de que fala que quando a custia é boa, a peça é boa, e a custia desse filme foi muito boa, muito intensa.

Chico Díaz: A pergunta é muito boa, foi um processo singular, o cinema tem um padrão industrial de produção que é análise técnica, ordem do dia e conforme as condições de luz ou cenário te obrigam a filmar de um jeito ou de outro. Aqui não, apesar de termos um roteiro, nós tínhamos uma abertura de interpretação e material para filmar de uma forma livre. Ou seja, nós não sabíamos o que íamos fazer no dia seguinte, não havia um plano de filmagem rigoroso. E isso dependia muito da necessidade artística do Rosemberg e da necessidade do filho dele que era o fotógrafo, foram as pessoas que encaminharam o processo. Nós tínhamos o universo do roteiro, foi completamente orgânico, muito da improvisação, muito do dia a dia e isso é sui generis, dá a possibilidade de contribuir, de nós atores contribuirmos com observações adquiridas no dia anterior. Se no dia anterior aconteceu isso, no dia posterior poderia acontecer aquilo. Íamos construindo, foi um processo orgânico e rico por isso.

CinemaScope: E vocês acham que o filme toca em questões que vivemos atualmente?

Rosemberg Cariry: O filme foi feito há quatro anos e ele de certa forma tinha uma visão crítica sobre alguns aspectos da política e da realidade brasileira. Vendo esse filme hoje, quatro anos depois, a gente fica até triste porque a coisa no Brasil se complicou bastante, como nós andamos para trás, como nós chegamos mais próximo do fundo do poço. E as pessoas terminam projetando no filme a situação atual, contemporânea, muitas pessoas vem falar comigo achando que aqueles artistas lutando para ter um prato de comida para sobreviver seria a situação do artista de hoje, com o desmonte da cultura, do MinC, das instituições, da pesquisa, da educação. E que a própria tragédia do circo também seria uma metáfora do Brasil. Eu digo bom pode se ver assim porque afinal de contas a arte tem camadas de leituras, mas é uma coisa aberta. A verdade é que eu não deixei que no final a coisa ficasse pessimista, mesmo entre os escombros aqueles “ratinhos” sobrevivem e aquela menina bota aquele leão invisível para urrar e termina com a visão das estradas, ou seja, alguma coisa continua, alguma coisa ainda existe.

Sílvia Buarque de Hollanda: Acho, completamente. Acho que retrata mais até do que na época que foi filmado: a condição do artista, a dificuldade de fazer arte, o desmonte que a gente está vivendo da cultura, a quantidade de teatros que estão sendo fechados. A resistência que se tornou fazer teatro, tentar viver dele já que é muito difícil hoje em dia. Acho que São Paulo está melhor, pelo menos o ator carioca tem essa visão que fazer teatro em São Paulo é mais possível. Mas a gente está vivendo um momento trágico no Brasil e a primeira coisa que dança é a cultura. “Tamo ainda dividindo o ovo”

Chico Díaz: Com certeza, e olha, está ficando cada vez mais atual porque o filme foi feito há quatro anos e não tinha a atualidade que tem hoje. Nem ministro da cultura nós temos, está ficando cada vez mais atual, na perspectiva que parece um filme pequeno, mas o sentido dele é grande, ele levanta essa condição, a condição da cultura, como esses artistas são e como devem ser tratados, qual a responsabilidade dos artistas na oxigenação de uma sociedade. Então, o filme ao meu ver está cada vez mais atual, mais importante e há necessidade dele de ser inserido nessa discussão.

CinemaScope: No filme, existe a crise no inferno. Como vocês veem a relação com a crise política brasileira?

Sílvia Buarque de Hollanda: O filme está chegando em uma hora muito apropriada.

Chico Díaz: É muito oportuno, deu muito certo porque a visita de Lampião ao inferno na verdade é um antigo cordel famoso do Nordeste. Mas é exatamente isso, quando chega no inferno é completamente capitalista, voraz, usurpador de poderes, é um usurpador, um golpista. É um cara que queima os concorrentes. É um cara que faz a mais valia, é um cara de lucros fáceis. Então ele carrega para o inferno essas figuras todas, faz uma analogia com os dias de hoje.

CinemaScope: Vocês acreditam que o cinema é um meio de democratização da cultura?

Rosemberg Cariry: Eu acho o cinema fundamental para a democratização da cultura, não de agora, mas desde o seu surgimento. O problema do cinema é o seu custo e os meios de difusão desse cinema estão cada vez mais nas mãos de grupos voltados ao cinema da indústria cultural, da cultura de massa. A esperança é que com o barateamento das pequenas câmeras digitas a produção independente aumente, essa acessibilidade democratizou o cinema. Talvez a gente consiga ter uma outra forma de expressão que ao mesmo tempo é um espaço de experimentação de linguagem, narrativas e ao mesmo tempo político, pois não é um cinema feito apenas pela classe média, mas um cinema feito também na pequena cidade do interior. A internet propicia um espaço muito interessante, filmes produzidos no interior do Ceará circulam em todos os cantos, isso é muito bacana, ao mesmo tempo surgem as tribos urbanas, os núcleos, os coletivos. E nós podemos falar de uma certeza da universalização da expressão estética contemporânea, ao mesmo tempo isso começa a se mesclar com as culturas populares, com as tradições. Eu acho isso um processo muito rico porque essa cultura popular passa a ter domínio sobre essa tecnologia e a usar também, então você tem uma produção de vídeo voltada para temas como a macumba, candomblé ou para o circo. É um processo antropofágico voraz, muito radical, a cultura popular não é estática, parada no tempo, é uma coisa viva e sempre em transformação. Os elementos da contemporaneidade são incorporados nessa cultura popular, os signos, os símbolos e os sons que vêm do pop ou do hip hop. Isso é muito bacana, nós não podemos falar da cultura popular como um sacrário a ser conservado, mas como um fogo em transformação. Hoje a pós modernidade é isso, o arcaico que se mistura com o moderno. Uma modernidade que entrou em crise, pois estamos em crise profunda, uma crise de um processo civilizatório que não deu certo, alguma coisa não deu certo. E nesse momento é doloroso, mas é um momento da crise, da transformação, ninguém sabe o que pode vir. É um caminho a ser percorrido, a estrada aberta.

Sílvia Buarque de Hollanda: Eu acho que a cultura e o cinema têm uma função fundamental. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, têm essa característica de aproximação, de juntar, da gente se conhecer, os povos se conhecerem, de dar identidade a um país, um país sem cultura é um país sem identidade.

Chico Díaz: Sem dúvida. Fazer um filme no Ceará, trazendo artistas cearenses, versando sobre o universo cearense é bem diferente de um filme feito em São Paulo, com os artistas paulistas. Isso é uma democratização de argumentos, o cinema é multifacetado, tem mil pontos de vistas, um filme pequeno, um filme de cunho regional, um filme de cunho autoral, um filme artesanal; ele carrega um núcleo que é a base da democratização.