Por Joyce Pais

O diretor Aurélio Michiles imergiu na história quase lendária de Cosme Alves Netto, uma espécie de guardião do cinema nacional. Exibido no Festival É Tudo Verdade, de 2014, o documentário remonta, com depoimento de personagens como Eduardo Coutinho, a trajetória de Cosme e sua paixão incondicional ao cinema. À frente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por mais de duas décadas, ele foi responsável pelo conservação e recuperação de diversas obras nacionais, preso e torturado durante a Ditadura Militar, por guardar obras consideradas subversivas. Batemos um papo com Michiles, onde ele falou sobre o processo de criação do filme, suas escolhas, a produção de documentários no Brasil e os planos para o futuro.

Cinemascope: De onde surgiu a ideia de fazer o filme Tudo por amor ao cinema? E qual a sua relação com essa figura mítica, que é o Cosme Alves Netto?

Aurélio Michiles: O Cosme, esse amazonense pai-d’égua, deixou suas digitais por todos os lugares aonde se respira o cinema. Ele foi responsável pela disseminação dos cineclubes pelo Brasil a fora, pelo intercâmbio do cinema entre os países latino americanos, defendeu com unhas e dentes a busca, a preservação e restauro de filmes raros e muitos deles considerados perdidos para sempre. O Cosme, por exemplo, foi responsável por dar a visibilidade a redescoberta de um dos personagens mais importantes do cinema do século XX, estou me referindo a Silvino Santos (1886-1970). Foi ele também que escreveu o projeto da Lei do Curta (anos 70/80) e muito mais. Guardou clandestinamente na reserva técnica da Cinemateca do MAM filmes que eram perseguidos pela ditadura e por causa disso foi preso e torturado duas vezes (1964 e 1969). Daí termos optado pela narrativa estética-conceitual em contar a sua vida através de curtas cenas de filmes…como se a vida dele fosse (e é) formada por aqueles filmes que assistiu e amou: “Tudo Por Amor Ao Cinema: “ELE FEZ DOS FILMES A HISTÓRIA DA SUA VIDA”. E, não poderia ser diferente.

CS: Como foi feita a seleção dos entrevistados para o filme?

Aurélio Michiles: Não diferente de todos os outros filmes documentários que realizei. Sempre surgem as mesmas dificuldades, elas parecem ser inerentes ao processo de produção de um filme. A principio parte-se de uma ideia, e que depois fundamentada numa pesquisa de conteúdo e iconográfica, faz-se uma lista de contatos que pode chegar numa soma de 100 pessoas, como neste caso. A principio não se pode abrir mão de nenhuma. Vai que em algumas destas pessoas revela-se a história fundamental que vai nortear a narrativa do filme? No caso do Cosme, ele foi uma pessoa agregadora, carismática e pro-ativo…Existe um sem números de pessoas que compartilharam da sua amizade e cada uma delas tem uma história extraordinária para contar. Até hoje recebo e-mails de alguém que tem/quer contar algo que viveu com o Cosme…daí ter denominado essas histórias como “causos-cósmicos”. Por causa de vários motivos, incluso de limitação de custos de produção, entrevistamos 70 pessoas em diversos países e apenas 34 entraram na montagem final. Mas, na primeira edição do filme ficou quase 4 horas…e aí, não havia outra solução senão cortar e cortar…Este é a parte do processo mais doloroso…um sentimento de perda, como estivéssemos cortando uma parte do nosso corpo, mas não podemos se apegar nisso ou naquilo, temos que chegar numa montagem que leve em consideração o diálogo permanente com espectador. Que ele se apaixone pela história como nós estamos apaixonados. Isto é o mais difícil no que refere ao processo criativo.

CS: Como você enxerga a produção de documentários no Brasil atualmente?

Aurélio Michiles: Eis um assunto que merece uma reflexão. Existe no Brasil uma tradição na produção de documentários. Os brasileiros sempre viveram numa condição aonde as questões da nossa história tiveram muito pouca oportunidade em se discutir, dada a permanência de governos autoritários e ditatoriais que sonegaram de várias gerações o direito ao acesso livre à informação. É possível que justamente essa sede de informação, tenha provocado a existência de um cinema-documentário, aquele que dialoga com a intimidade de qualquer brasileiro. Por outro lado, estamos vivendo uma democratização da produção audiovisual, refiro-me a questão técnica. Hoje, qualquer pessoa pode contar a sua história, por exemplo, utilizando o seu smartphone. Refiro-me qualquer brasileiro do extremo norte ao extremo sul do país. No entanto, em todo o território nacional, os cineastas brasileiros penam para fazer chegar os seus filmes no circuito exibidor. Os documentários então…nem se fala, mas paradoxalmente o Brasil, hoje, é o país aonde se tem mais filmes-documentários em cartaz. Agora, não se justifica que cidades brasileiras  com  magnitude econômica-cultural não consigam exibir a diversidade  da nossa produção audiovisual. Agora, o fato de conseguir exibir o meu filme Tudo Por Amor Ao Cinema no circuito comercial, pra mim, têm uma importância de enorme dimensão. É uma conquista. Ao menos, aqui no Brasil temos vários eventos, como mostras e festivais que dão visibilidade a nossa produção de filmes-documentários.

CS: Quais são seus projetos futuros?

É difícil falar de um projeto em processo (futuro) quando se está com as energias todas voltados para tornar visível uma produção que se dedicou 5 anos de trabalho. Nós, cineastas, sempre temos vários projetos na gaveta, na memória e mais algum em processo, com certeza, pretendo em 2017, estar aqui neste mesmo espaço, conversando contigo sobre o meu filme O Rugido do Mar na Selva.

Pergunta Cinemascope: Se você pudesse ser o personagem de algum filme, qual seria?

Hummm…que difícil! Mas vou arriscar não somente um, mas dois. Eles sempre me emocionaram, não somente pelo perfil do personagem, mas também pela qualidade da performance destes dois atores, aqui citados:

  1. Howard (Walter Huston), o velho minerador no filme “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) de John Huston;
  2. Isak Borg (Victor Sjostrom), o viúvo que viaja para receber um titulo honorifico enquanto repassa a sua memória – no filme “Morangos Silvestres” (1957) de Ingmar Begman.