Por Frederico Cabala
No início da década de 1960, Eduardo Coutinho seguiu para o sertão da Paraíba. Aos 28 anos, acompanhado por uma equipe que incluía nomes como Vladimir Carvalho e o fotógrafo Fernando Duarte, o diretor tinha recebido incumbência de fazer um filme para o CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes). Com ideias frescas do cinema novo em mente, o longa partiria do acontecimento real do assassinato de João Pedro Teixeira, líder camponês morto a mando de um grande proprietário de terras. O nome do filme — Cabra Marcado para Morrer. Detalhe que toda atuação seria feita por moradores locais, alguns desempenhando o papel de si mesmo, como Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro.
As filmagens começaram em fins de fevereiro de 1964 e, após 34 dias, foram surpreendidas pelo golpe que eclodiu no país. Militares foram em busca da equipe suspeita de subversão, esta fugiu como pode e grande parte do material se perdeu. Por sorte, 40% do negativo rodado até então havia sido enviado para um laboratório do Rio de Janeiro, onde permaneceu silenciosamente disfarçado de A Rosa do Campo por quase 20 anos.
Coutinho decide retomar o projeto no mesmo passo que a política brasileira aponta para um futuro de abertura através da anistia.
No intervalo entre a primeira e a segunda filmagem, o documentarista trabalhou no Globo Repórter realizando diversas funções, entre as quais a de direção. Filmou inclusive no nordeste temáticas próximas à do primeiro Cabra. Para Coutinho, esse período foi importante, sobretudo para a economia de recursos necessários que tornasse possível a continuidade do filme inacabado. No início dos anos 1980, portanto, o diretor solicita dois períodos de férias e se desloca para o sertão pernambucano. Sem tantas ideias preconcebidas e roteiro a ser seguido, Coutinho tinha em vista como essência o registro do reencontro com personagens do primeiro projeto e a relação destes com memória, reminiscências da primeira filmagem e lembranças de João Pedro Teixeira.
As cenas iniciais são emblemas da diferença abissal entre a primeira ideia de Cabra e o que o filme se tornou. Coutinho convida a população participante do filme de 1964 para exibição ao ar livre do que foi salvo da primeira filmagem. Não mais uma narrativa fechada, um filme a favor de algo, um longa como mensageiro de uma ideologia. A tônica do filme passa a ser a reação das pessoas em contato com o passado. Com o próprio filme. O documentário reflete a todo tempo sobre si mesmo. É metacinema.
Um cinema metalinguístico, autoquestionador, rompe com o que a cartilha que seguia a maior parte de documentários. As inalcançáveis objetividade e imparcialidade, o não aparecimento de equipe de filmagem ou de perguntas do diretor do filme durante as entrevistas, tudo isso é deixado de lado. O próprio Coutinho se insere como personagem. Como não poderia deixar de ser, pois é um filme intransferível. Houve Cabra porque houve envolvimento direto, quase obsessão orgânica, entre um diretor e a continuação de um trabalho 17 anos depois. Como dito por ele mesmo, era “um troço do fundo do coração, uma dor no fígado, um negócio brutal”, não fosse o filme feito, ele “ficaria envenenado para o resto da vida”.
A narrativa do que resultou no longa percorre o fio da memória da maior quantidade de participantes das primeiras filmagens quanto possível, mas centra-se na figura de Elizabeth Teixeira e seus filhos.
A história dela se confunde com a do filme. Com o golpe militar, ela é presa por meses, se muda para o Rio Grande do Norte, passa a atender por outro nome e partilha seus oito filhos com parentes. O primeiro sinal de redemocratização do país é também chance para Elizabeth se desencobrir e procurar ela também o contato com o passado. Filhos, militância e terra natal.
Isso interessa ao filme. E, concentrado no núcleo de Elizabeth, Coutinho insere no filme recordações familiares em forma de mágoas, olhos marejados e perspectiva de reencontro.
Coutinho é um cineasta tardio, em comparação com contemporâneos do cinema novo. Cabra foi finalizado aos 50 anos do diretor, mas guiou, em termos estéticos, o que seria feito pelo documentarista em muitos trabalhos posteriores. Principalmente no que diz respeito à palavra.
A fluência do filme deve muito ao contar dos personagens. Sendo boa parte desses formada por analfabetos e pessoas alheias à cultura do letramento, a riqueza verbal da oralidade é crucial para Cabra Marcado Para Morrer.
Outro ponto que, digamos assim, representa o início de uma marca autoral do diretor é a opção pelos anônimos, pelas vozes não ouvidas, os desprezados pelo discurso dominante, os tratados com indiferença, considerados pela sociedade como abjetos e infames. Na etimologia da palavra infame parece se encontrar o que palpitou em Coutinho a necessidade de fazer o Cabra existir. A rica história dos não famosos.
Veja o trailer: