Por Joyce Pais

O cômico revela as relações deformadas entre os sexos e entre as classes, das quais o ator é o sujeito paradoxal, em transito nas contradições de seu tempo, com Jack Lemmon e Tony Curtis que, para não serem testemunhas de violência da qual são contemporâneos, descobrem uma outra na qual não haviam pensado: a que opõe os homens e às mulheres e que jamais se sente muito bem se não se mudar de sexo. Some like it hot (Quando mais quente melhor, 1959), sob um formidável impulso cômico que, pelo disfarce, reata com o gênio elementar da farsa, deixa advinhar a origem do riso: o defeito essencial de qualquer aparência que faz com que jamais se seka por inteiro o que se é: “Nobody is perfect”, como diz Joe E. Brown a Jack Lemmon, quando este lhe confessa não ser a garota de seus sonhos, mas um contrabaixista falido (VEILLON, 1993, p. 212).

Filmado em preto e branco por questões relacionadas a maquiagem e fotografia, Quanto mais quente melhor (1959) é uma obra do diretor Billy Wilder que, inteligentemente, misturou os gêneros policial (máfia) e comédia (musical), se tornando um marco da sua filmografia e contribuindo com a consagração de Marilyn, quando esta já se encontrava na fase final de sua carreira.

A história do filme se passa na Lei Seca, em um cabaré disfarçado de funeral, cenário que desencadeia uma série de mortes presenciadas por duas testemunhas, dois homens (Jack Lemmom e Toni Curtis), que são obrigados a fugir travestidos com uma banda de jazz feminina. É nesse contexto que encontra a estonteante e outsider da banda, Sugar Cane, a personagem de Marilyn. A atriz, mais madura e já considerada uma estrela, defendia a idéia de que a personagem não deveria se tornar caricata, uma jovem inocente que passou a vida sendo enganada por homens em jogos e decepções amorosas; e usa, na interpretação, mecanismos para delineá-la de forma mais sutil, não simplesmente caracterizá-la com ênfase nesse ou naquele aspecto mais superficial. Marilyn atuava segundo sua vontade, e por ser uma estrela, tinha até certo ponto, poder e opinião validada durante as filmagens.

Em sua cena de apresentação, ela anda em direção ao trem com um vestido preto justo, nota-se que o close da câmera em seu “rebolado” acompanhado pelo olhares “maliciosos” dos músicos, que a esta altura já estavam transformados em Josephine e Geraldine, denotam, desde o início, a antítese que norteará a trama, a do universo feminino e masculino. Justificado pelo comentário do personagem de Jack Lemmon: “É um sexo completamente diferente”.

Por meio de uma linguagem ousada para a época na qual foi produzido, no filme, o diretor adentra o território de alguns tabus, sendo o principal, a diferença de genêros convencionados muitas vezes social ou culturalmente. Ideais de mulher e de homem são buscados a todo tempo através do cômico, que nas entrelinhas esconde conceitos e estereótipos encrustados no imaginário dos indivíduos.

Na vida pessoal, Marilyn passava por uma gravidez (a qual posteriormente resultou em um aborto espontâneo) e um casamento conturbado com Arthur Miller, respeitado dramaturgo norte americano; enfretava problemas profissionais com a equipe de produção, contratuais com a Twentieth Century Fox, de saúde – tentava lidar com sua depressão e o vício em remédios – além de estar em conflito com o seu envelhecimento, o que dificultaria cada vez mais a atuação em papéis de sex symbol, que apesar.

No trabalho que lhe atribuiu o patamar de estrela eterna do cinema, Marilyn joga maliciosamente com todas as sutilezas do espaço entre o sexo e o gênero. Obra extravagante e delicada feita de ambiguidades e paródia sobre o gênero masculino e feminino, a atriz parecia conhecer bem até que ponto o feminino é fabricado (como ela própria foi, em Hollywood), como uma mimetização, uma performance.

Veja o trailer:

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