A arte, porém, não deve apensar refletir, mas também transcender, seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade. – Andrei Tarkovsky

 

Para John Locke sem a consciência não existe ser humano. O que ele queria dizer era que a noção de ser do ser humano residia na consciência, o que por sua vez acreditava ser a memória. Logo, o ser humano só ‘é’ por conta de sua memória.

Para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o ser é essencialmente uma construção social, nós somos o que somos conforme somos compreendidos pelas outras pessoas.

Solaris

Em Solaris (1972), na esperança de fazer um filme que a União Soviética não iria censurar e proibir de ser exibido na sua terra natal, Tarkovsky decide adaptar o livro com o mesmo nome do escritor polonês Stanislaw Lem. Sem se importar muito com o gênero de ficção científica, o diretor procurou dentro dos acontecimentos do romance a sua filosofia e suas questões, e foi isso que ele trouxe à tela. 

O psicólogo Kris Kelvin é convocado para ir à estação espacial que orbita Solaris – um planeta que é banhado por um oceano gigante e que gerou uma nova vertente de pesquisa científica, a solarística – para investigar estranhos acontecimentos e decidir se a missão de procurar vida no planeta deve ser mantida ou não. 

Na primeira meia hora de Solaris seguimos Kelvin ainda na Terra, apreciando os seus últimos momentos na natureza e com sua família. Somos lembrados por Tarkovsky que tudo acontece por um motivo que não nos é informado, e isso não importa, o que importa é o que fazemos com o momento, uma vez que tudo seguirá, de uma maneira ou de outra, igual. 

Chegando na estação espacial, Kelvin é informado que um dos três tripulantes, seu amigo Gibarian, se matou – e que se acontecer dele ver alguma coisa diferente, para não tentar perder a cabeça. Os dois tripulantes que ainda estão lá, Snaut e Sartorius, parecem afetados por alguma coisa, mas não conseguimos ainda entender o que. 

Durante a noite, uma mulher aparece no quarto de Kelvin e ele a reconhece. É sua mulher, Hari, que havia se matado 10 anos antes. O oceano de Solaris age como um telepata, adentrando nas lembranças dos tripulantes e trazendo parte delas de volta.

“Solaris, é para mim, meu pior filme. É o filme que eu menos gosto dentre todos os que realizei.  Ao contrário do autor do livro, eu não tenho interesse no problema da relação entre o homem e o conhecimento. Mas nos problemas psicológicos… Os problemas humanos. Pode o homem viver em condições desumanas e continuar sendo homem?”

O que o diretor considerou como seu filme mais mal sucedido, é possivelmente seu trabalho de maior discussão filosófica. Tarkovsky afirmou que os temas abordados em Andrei Rublev o nortearam para a concepção de Solaris, e eu ouso dizer que aqui ele foi além. 

Quando Hari aparece para Kelvin pela primeira vez, ele fica completamente desnorteado e não consegue pensar em mais nada a não ser acabar com aquela “alucinação”. Mas Snaut deixa claro que não importa quantas vezes ele se livre dela, ela irá aparecer novamente na próxima noite pois é assim que a solarística funciona.

Mas Kelvin, tomado por uma angústia e, por que não dizer, saudade de sua mulher, não tem coragem de matá-la novamente. E se Hari está ali por intermédio das memórias e lembranças de Kelvin, ela realmente existe, ela é realmente uma pessoa, ou não?

Para Locke, as memórias do ser humano o tornam um ser vivo, caso contrário qualquer carcaça poderia se considerar um ser vivo. É a partir da memória que nos moldamos e, sendo assim, Hari não poderia ser considerada um ser vivo. Mas ela sente dor, amor, medo. Como Kelvin poderia considerá-la qualquer coisa diferente de um ser humano, do ser humano que ele mesmo amava?

Conforme Hari permanece na estação espacial, é como se ela passasse a criar uma consciência de si, agora não mais focada somente nas lembranças que Kelvin tinha sobre ela, e sim nas interações com os outros membros da estação e com o próprio Kelvin. 

Segundo Hegel, nós somos o que os outros acreditam que somos. Quando Hari convence Kelvin a vê-la como um ser humano independente, não mais preso à sua memória da Hari com quem ele foi casado, ela então se torna esse ser humano independente. 

Em Solaris, nós somos o que os outros percebem de nós mesmos. Se não existem pessoas com quem interagir, ainda assim existimos? 

Snaut fala que “Não temos a menor ambição de conquistar o cosmos, queremos apenas estender a Terra até as fronteiras do Universo”. E isso não é exatamente o que acontece? Vários foguetes e ideias mirabolantes para que o homem ache vida inteligente no espaço, mas que vida é essa? O que o ser humano, falho e cheio de vícios, pode imaginar como conquista do Universo? Que tipo de vida é essa que tanto procuramos, se não uma extensão da nossa? Um planeta parecido com o nosso?

O homem precisa do homem – ele diz ao final do seu discurso. E isso não é exatamente o que o cinema do Tarkovsky nos mostra? Que o homem, seja ele na idade média ou no futuro em estações espaciais, está sempre à procura de conexões, de respostas para as perguntas que nos cercam até o dia de nossa morte? 

O que é ser feliz? O que torna uma vida plena? Qual o propósito de Deus? O que buscamos, afinal, nesse mundo, se não um momento de tranquilidade?

O pior filme de Tarkovsky, segundo suas próprias palavras, foi indicado à Palma de Ouro em Cannes, ganhou o FIPRESCI e o Prêmio Especial do Júri em 1972.

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