De todas as obras já realizadas por Tim Burton, Sweeney Todd: o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet é uma das que sintetizam melhor seu estilo, influências e interesses, além de escancarar e explicitar em violência gráfica, personagens cruéis e um visual decadente e sombrio da melhor forma esse universo particular e esquisito que o cineasta criou durante esses anos.

Adaptado do musical de 1979 de Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, que consequentemente é inspirado em um famoso personagem ficcional criado na época dos penny dreadful, literatura barata com histórias sombrias vendidas na Inglaterra no século XIX. Só de traçar as origens desse curioso personagem, é perceptível que é o sujeito macabro vindo de um universo ímpar, algo típico na filmografia de Burton.

Gerando também uma série de filmes (datados de 1928, 1936 e um filme para televisão em 1998), a história do barbeiro que assassinava suas vítimas e usava seus corpos como recheio para as tortas da Mrs. Lovett inspira um fascínio desde os primórdios em artistas e cineastas. Talvez por conta da universalidade na posição de poder que um barbeiro fica perante seu cliente, alguém vulnerável diante de uma afiada navalha e que um simples movimento pode jorrar uma poça de sangue.

Mais curioso é que Sodheim e Wheeler tenham concebido um musical de uma história tão macabra e violenta e torna-la tão funcional, jamais abandonando o tom lúgubre e soturno que o inconsciente coletivo criou diante da lenda de Sweeney Todd. Sejam pelas composições geralmente fúnebres ou dramáticas que ressoam a tragédia e brutalidade dos personagens e da história, como pelas interpretações que os atores adotam (no caso do filme de Burton, bastante competente).

O filme de 2007 se passa na era vitoriana na Inglaterra, onde o ainda Benjamin Barker (Depp) vive feliz com sua esposa Lucy (Kelly) e sua filha Johanna. Após atiçar o interesse do corrupto juiz Turpin (Rickman), ele estabelece um esquema onde prende Benjamin e fica com Lucy e Johanna. Anos depois, Barker volta da prisão, agora se assumindo como Sweeney Todd, um barbeiro que passa a trabalhar em cima da casa de tortas de Mrs. Lovett (Carter). Passando a matar seus clientes para servirem de torta, Todd planeja uma vingança contra o juiz Turpin e reaver sua filha Johanna (Wisener), agora crescida e sob os cuidados dele.

Investindo pela terceira vez em filmes que trazem números musicais (anteriormente realizou o remake de A Fantástica Fábrica de Chocolate e a animação A Noiva-Cadáver), Burton almejava que Sweeney Todd fosse, em essência, um musical fluído, onde não houvesse diversos diálogos e logo depois as sequências com música. Ao ter visto a peça teatral muito jovem, ficou encantado por ela e a descreveu como “um filme mudo com músicas”.

Não é tão absurdo, já que Burton enxergou um apelo bastante cinematográfico no musical e aqui a adota da forma mais expressiva possível. A mise en scène que tece, como a maneira em que enquadra seus personagens, a forma como os atores se locomovem diante um dos outros e eles correspondem à musicalidade de tudo, é belíssimo.

Basta ver uma das minhas sequências favoritas do filme, que traz Epiphany, onde a movimentação dos atores não apenas traduz os sentimentos deles daquele momento (Todd furioso por não ter matado Turpin e Mrs. Lovett assustada) como os elementos do design de produção (o espelho quebrado deformando Todd), tudo dá um tom bastante musical e vivaz a tudo. A música, ainda, traz vários tons que ornam e traduzem várias emoções do filme, como a agressividade e crueldade dos personagens como da dor da tragédia.

Já imergindo naquele universo ao iniciar o filme com um clima chuvoso e sempre cinza, fábricas que soltam fumaças e a trajetória de um sangue, a câmera de Burton parece sempre respeitar os movimentos que as composições de Sodheim pedem e criam uma cosmologia muito particular e interessante, justamente por combinar tão bem o funesto com o melodioso.

E apesar de ser um musical que não traz coreografias complexas ou mesmo cantores exímios, Burton adequa muito bem em uma unidade. Mesmo limitado como cantor, Johnny Depp aqui oferece uma das suas melhores interpretações (que lhe rendeu sua terceira e última indicação ao Oscar de Melhor Ator), ao variar a voz de Todd como algo que soa para dentro e quando é extravasado é um grito bestial. Alguns vícios de atuações que geralmente o ator adota funcionam muito bom, como quando ele tenta mandar o garoto Toby embora e em milissegundos faz uma expressão de raiva pela insistência do menino em ficar.

 

O restante do elenco também é fantástico, desde a Mrs. Lovett de Helena Boham Carter, cuja persona se encaixa perfeitamente para a excêntrica cozinheira, ou o juiz Turpin, vivido pelo sempre maravilhoso Alan Rickman, que empresta sua sisudez e voz nasal para torna-lo um personagem absolutamente desprezível.

Até mesmo chega a brilhar aqui o divertido Sasha Baron Cohen, que cria um bem-vindo alívio cômico com seu Pirelli e a forma desengonçada com que se locomove. Aliás, Burton usa muito bem do humor negro aqui, ao ter consciência plena do absurdo de seu universo e cria a única cena que usa de cores na fotografia e na direção de arte, que é o sonho de Mrs. Lovett com Todd e desse contraste surge a comicidade da sequência.

O roteiro de John Logan, embora em alguns momentos decida focar em personagens e situações menos interessantes como o romance entre Johanna e Anthony, funciona muito bem por quase adotar uma lógica das tragédias gregas, que dizem respeito a esses confrontos e dramas vividos entre familiares. Tudo é mais trágico por se tratar da esposa e filha de Todd e quando chega ao final, há uma ação quase divina ditando de que o protagonista estava condenado a matar quem ama, assim como Édipo matou seu próprio pai. O plano final se trata de um dos mais poéticos, tristes e marcantes da filmografia de Tim Burton.

É um filme bem explicitamente violento comparado com outros de Burton, flertando com gore, o que torna aquele universo muito mais brutal, já que o sangue parece ser a única cor quente que surge na tela. A obra também é permeada de pessoas imorais, que se sentem miseráveis e estão condenados a permanecerem daquele jeito e repassarem esse fardo até mesmo para figuras infantis e não mais inocentes, como Toby.

Sweeney Todd é um dos mais interessantes e bem executados trabalhos de Tim Burton e que condensa todas as famosas marcas registradas que estampou durante toda sua carreira e aqui concebe uma singularidade bastante especial.