Os road movies constituem, desde o final da década de 1960, um gênero profundamente vinculado aos Estados Unidos e à cultura do automóvel difundida naquele país a partir dos anos 1950. Com o boom da indústria automobilística após a Segunda Guerra Mundial e a construção das grandes autoestradas, o consumo de automóveis se popularizou. Nesse momento, surgiram os drive-ins, os drive-thrus e os motéis (palavra formada a partir da junção de motor e hotel). Além disso, foi também nesse contexto que surgiu a assim chamada geração beat, cuja expressão mais notável é o livro On the Road, de Jack Kerouac: a estrada transformou-se em símbolo de liberdade, da possibilidade de escapar das injunções sociais e da “mesmice” suburbana.
Por sua vez, a contracultura dos anos 1960 e 70 apropriou-se desse espírito escapista, mas o fez em chave primitivista, pois almejava uma volta ao estado de natureza, em contraposição à vida urbana. Avessos à fé no progresso e à modernização representada pelo automóvel e pelas grandes estradas, os hippies puseram o pé na estrada – ao contrário dos beats, que haviam afundado o pé no acelerador na década anterior. De todo modo, mesmo em outro contexto, pode-se dizer que esse jovem também foi incapaz de suportar o peso desta normatização da vida. Nesse sentido, hippies e beats carregam consigo uma semelhança irrevogável com o cowboy dos filmes de faroeste: assim como os vaqueiros, não encontram um espaço nas convenções sociais, são demasiado “selvagens” para tanto, e por isso se deslocam através de planícies e estradas intermináveis.
No entanto, mesmo tendo se estabelecido em contexto especificamente estadunidense, os filmes de estrada caíram no imaginário mundial. Evidentemente, muitas dessas produções visaram apenas a transposição de uma fórmula de sucesso para seu respectivo mercado cinematográfico. Porém, em outros casos, a estrada continuou a ser retratada como espaço de descobertas subjetivas e corporais, ao mesmo tempo em que as convenções formais do gênero foram totalmente subvertidas. Nesses casos, não há espaço para o culto à velocidade e o elogio ao progresso técnico: a estrada é uma figura metafórica do afastamento entre as pessoas ensejado pela própria modernidade industrial.
Por essas razões, a mostra FILMES DE ESTRADA tem por objetivo traçar um espectro amplo e diverso dos chamados road movies. Inclui tanto filmes que inspiraram o surgimento do gênero, como também alguns clássicos americanos que contribuíram para estabelecer suas convenções, além de apropriações diversas dessa fórmula. A programação reúne filmes que estão nas origens do imaginário cinematográfico da estrada (como Vinhas da Ira, de John Ford, Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, O Mundo Odeia-me, de Ida Lupino, O Salário do Medo, de Henri-Georges Clouzot, Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, e A Estrada da Vida, de Frederico Fellini), além de alguns títulos que se tornaram clássicos da contracultura (como Sem Destino, de Dennis Hopper, talvez o road movie absoluto, e Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni), e de obras que subvertem o gênero: Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky, e Week-End à Francesa, de Jean-Luc Godard, por exemplo.
A mostra também abriga alguns filmes que contribuíram para uma atualização dos filmes de estrada, como Sem Teto Nem Lei, de Agnès Varda, Paris, Texas, de Wim Wenders, e o recente Minha Felicidade, do russo Sergei Losnitza, além de algumas de suas expressões mais marcantes dos últimos anos, como Medo e Delírio, de Terry Gilliam, Pequena Miss Sunshine, de Valerie Faris e Johnathan Dayton, E Sua Mãe Também, de Alfonso Cuarón. Apresenta, ainda, Na Estrada, a recentíssima adaptação para o cinema do seminal livro On The Road empreendida pelo brasileiro Walter Salles, bastante criticada por suavizar o radicalismo da crítica à cultura norte-americana retratada por Jack Kerouac e outros beats que pegaram a estrada.