Não é de hoje que falamos sobre o desmonte do audiovisual – e da cultura como todo – no Brasil. Comentamos sobre como as alterações dentro da Ancine e nos repasses da Lei Rouanet impactariam na indústria cinematógrafica o que não sabíamos, no entanto, era que esse era apenas o começo de um período extremamente difícil para o setor. Com a pandemia do COVID-19, salas de cinema e festivais sentiram quase de imediato o impacto, inclusive internacionalmente. Em uma tentativa de contornar a situação, o Cine Belas Artes, em São Paulo, por exemplo, investiu em crowdfunding, leilão e até mesmo em um drive-in em parceria com o Memorial da América Latina. Com a pandemia crescendo descontroladamente em meio a um governo que nem sequer o Ministério da Saúde é levado à sério, o golpe para a cultura foi pesado. Porém, dificilmente um lugar sentiu mais do que a Cinemateca Brasileira, casa do maior acervo audiovisual da América Latina: são 250 mil rolos de filme, cerca de 30 mil títulos, além de um vasto acervo de documentos e registros relacionados à história do cinema.
Originada pela iniciativa dos estudantes Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza, o projeto do que viria a ser a Cinemateca Brasileira começou quando Gomes, ao fugir da prisão por participar da Intentona Comunista de 1935, foi para a Europa e conheceu o museu vivo de cinema francês. Foi inspirado pela Cinémathèque Française e a importância de se preservar o patrimônio cultural auidovisual que ele retornou ao Brasil com o intuito de criar algo similar. Começando como um clube de cinema, a ideia precisou esperar, pois, foi fechada em 1941 pelo Departamento de Imprensa e Propagando, o DIP, do Estado Novo de Getúlio Vargas. Esse seria o primeiro dos embates da instituição com o governo.
A Cinemateca como conhecemos veio a se desenvolver em 1946, após o antigo clube firmar um acordo com o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foi apenas em 1956 que o projeto ganhoou maior independência, se desvinculando do museu. No ano seguinte, mais uma tragédia marcaria sua história: um incêndio atinge as instalações da Rua Sete de Abril e a destrói. Os incêndios, aliás, se tornariam um dos principais problemas do local. Como muitos dos rolos são feitos de materiais inflamáveis, é preciso que as condições de preservação sejam ideais não somente para preservá-los, mas para evitar que entrem em autocombustão. Transferida para o Parque do Ibirapuera, no Pavilhão 9, a Cinemateca sofre outro incêndio em 1969 acarretando na perda de inúmeros materiais documentais em suporte de nitrato. Com um terceiro incêndio, em 1982, e passando por dificuldades econômicas, a transferência da instituição ao governo público se torna realidade. Em 1988, após concessão do então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, a Cinemateca é transferida para a cede que hoje conhecemos, o prédio do Antigo Matadouro da Vila Clementino. No entanto, o que deveria melhorar a situação, apenas piorou.
Cinemateca: um caso de descaso
Antes de chegar à situação dramática que está hoje, a Cinemateca Passou por outros altos e baixos. Em 2003 houve uma auditoria que resultou na exoneração do diretor e a suspensão do repasse de verbas. Em tal período, 43% dos funcionários foram demitidos. Outro incêndio, dessa vez em 2016, destruiu 731 títulos. Destes, apenas 461 possuíam cópias de segurança. O depósito da Cinemateca, também localizado na Vila Clementina, passou por uma enchente em fevereiro de 2020, danificando 113 mil cópias de DVDs. No entanto, de lá para cá as coisas só pioraram e, em 2020, a situação se tornou desesperadora.
Em junho, a brigada de incêndio, que é contrata por uma empresa terceirizada, deixou de trabalhar, o gerador responsável por manter a energia caso a luz acabe não tem combustível funcionar – e nós sabemos o quão fundamental é manter os materiais preservados pela instituição em uma temperatura ideal – a própria empresa responsável pela manutenção da refrigeração parou de trabalhar e a empresa de segurança deve sair ainda este mês. A falta de um órgão que realmente se responsabilize pela Cinemateca faz com que uma nova tragédia seja apenas questão de tempo. Na verdade, é impressionante que nada tenha ocorrido ainda. Após cortes feitos pelo então ministro da educação, Abraham Weintrub, à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), entidade responsável pela gestão administrativa da Cinemateca e também da TV Escola, os funcionários da instituição estão desde abril sem receber os salários. Não há nem ao menos dinheiro para as rescisões. Há boatos de que uma possível reintegração da Cinemateca à União aconteça algo que, na verdade, dá mais medo do que esperança, uma vez que o descaso do atual governo para com a cultura é explícito. São já sete meses sem recursos federais repassados para a instituição. A Prefeitura de São Paulo diz buscar uma solução, mas não parece estar realmente interessada em agir. Enquanto isso, a bomba relógio da Cinemateca se aproxima cada vez mais da explosão.
SOS Cinemateca
Cientes do drama, a Associação Paulista de Cineastas, junto a entidades cinematográficas, diretores e artistas de maneira geral decidiram criar um manifesto para chamar a atenção ao que vem ocorrendo com a Cinemateca e buscar por uma solução. Foi criada uma campanha de arrecadação de fundos para auxiliar os trabalhadores. Apesar de não atingir a meta programada, que seria de R$ 200 mil, a campanha conseguiu arrecadar mais de R$ 127 mil. Foi criado também um manifesto chamado Cinemateca Brasileira pede socorro (que ainda está recebendo assinaturas) direcionado à Secretaria Especial da Cultura e à Secretaria do Audiovisual.
Em entrevista ao Correio Brasiliense no começo deste mês, organizadores do SOS Cinemateca explicaram que “Desde o corte, a Cinemateca não vem recebendo nenhum aporte de recursos. É verdade que em 2019, ela recebeu metade dos valores previstos para o funcionamento essencial, não ideal, essencial. De R$ 13 milhões, recebeu R$ 7 milhões. A Acerp chegou a alegar que usou recursos próprios para completar o que faltava, mas com rompimento do contrato, o governo não quer pagar os recursos colocados pela organização, o que criou um impasse. Hoje a Cinemateca está abandonada pelo poder público”. Ou seja, dificilmente aquele que está sucatizando a instituição agirá para ajudá-la, a não ser que haja grande pressão popular. Como forma de simbolizar o apreço pela Cinemateca, um Abração está sendo organizado para o dia 14, das 16h às 19h, junto a um show de laser. Os presentes deverão usar máscara e respeitar o distanciamento social. Apesar do nome simbólico, não haverá qualquer contato físico.
A importância desse espaço para a memória audiovisual brasileira é inestimável e sua perda seria irreparável. O clamor por sua salvação chegou até mesmo ao Festival de Cannes e há outras Cinematecas, como a Cineteca di Bologna, participando da ação para que não percamos mais um importante pedaço da nossa história. Estamos presenciando, de maneira aberta e explícita, o descaso das políticas públicas não somente com o audiovisual brasileiro, mas com a nossa cultura e memória. O incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2018 – outra tragédia anunciada – está prestes a se repetir com a Cinemateca Brasileira e diante dos nossos olhos. Não adianta chorarmos e lamentarmos após o ocorrido, é preciso pressionar agora e fazer com que o governo arque com a responsabilidade daquilo que lhe compete. A Cinemateca é um patrimônio nacional, preservá-la e defendê-la é também uma obrigação nossa.