A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, que foi eleito o representante brasileiro para concorrer a uma vaga no Oscar 2020, depois de uma disputa com Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, parte de uma estrutura melodramática, mas não define as duas protagonistas pelos seus antagonistas. É muito claro quem deve ser odiado e criticado – o pai e o marido, principalmente -, mas estas figuras não tomam a dianteira. O foco é sempre direcionado para as dores, felicidades e descobertas das irmãs Guida e Eurídice; o foco é o esforço da proximidade entre duas pessoas que foram distanciadas. As forças contrárias a elas não são totalmente personificadas em um outro personagem específico, mas ampliadas, como se o real inimigo das irmãs fosse uma estrutura e não somente outra pessoa.
O filme começa com as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida Gusmão (Julia Stockler) ainda jovens, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Filhas de um português conservador, que vive no século passado, como diz uma das garotas, elas são bastante unidas. A primeira cena de A Vida Invisível é um desencontro das duas personagens durante um passeio, mostrando um desespero simbólico. Guida se apaixona por um marinheiro grego e vai com ele para a Europa, mas logo é desiludida e retorna à sua casa, grávida. O seu pai, no entanto, não aceita receber a filha. Enquanto isso, Eurídice se casa com Antenor (Gregório Duvivier). Ela é uma talentosa pianista que sonha em estudar em um conservatório de Viena, o que vai entrar em conflito com a forma como os homens em sua volta acreditam que deve ser a vida de uma mulher. Os pais Gusmão escondem de Eurídice que Guida voltou ao Rio de Janeiro, e o filme apresenta as vidas paralelas das duas personagens.
Sem romper com a linearidade narrativa, A Vida Invisível ganha força nos leves desvios que cria. Assistimos mulheres se tornarem mães, mas a principal questão do filme não é a maternidade. Os conflitos de gerações em um lar doméstico é o motivo dramático básico, mas não assistimos a um melodrama totalmente padrão. Isto porque se o deleite que um melodrama dos anos 1950 provoca “vem do conflito não entre inimigos, mas de pessoas unidas por laços de sangue e amor” (Laura Mulvey, em Notas sobre Sirk e o melodrama), no filme de Karim o antagonismo familiar é amenizado para se valorizar os sentimentos entre as duas irmãs.
Formalmente, há uma estilização na fotografia e na direção de arte, mas que não é excessiva. No geral, há uma variedade de cores em cena que sempre chama atenção, seja pelo cor dos adereços ou dos figurinos em cena ou pela fotografia mais expressiva, que ganha mais vivacidade principalmente nas cenas noturnas e esverdeadas.
Para demonstrar mais um leve desvio do filme, vale um rápido comentário de Laura Mulvey sobre a iluminação em Tudo o que céu permite, melodrama de Douglas Sirk, no qual a divisão emocional do filme é baseada na divisão “entre as luzes frias e intensas (azul e amarelo) da solidão, da repressão e da opressão, e as luzes quentes e brandas (vermelho/laranja) da esperança, da liberdade emocional e da satisfação sexual”. Pensando no filme de Karim, há uma inversão nessa valoração, pois o amarelo é a cor predominante do mundo de Guida, personagem que, apesar de realmente passar por momentos de solidão, gradativamente ganha mais esperança e liberdade emocional, sempre acompanhada por um amarelo delicado e pungente, que marca a construção de uma nova família, um novo lar.
Esse amarelo marca uma das cenas mais bonitas do filme. Em uma câmera distante e fixa, assistimos Guida olhar para o seu novo quintal, que é humilde e arrumado. O lado externo de sua casa original não é filmado com essa serenidade. Lá, a imagem era acinzentada, apesar de uma natureza mais abundante. A câmera tinha movimento mais abruptos e, em uma cena, uma ventania simbólica aumenta a tensão. Mas no novo lar de Guida há uma plenitude subjetiva bem mais sólida do que a casa anterior, pois mesmo que os Gusmão tivessem uma residência maior, os personagens nunca apresentam o sorriso sublime de Guida nesta cena posterior.
Os atritos do lar original são diminuídos enquanto assistimos a construção do novo lares. Um deles, o de Eurídice, ainda sofre influências de uma visão patriarcal, mas o de Gusmão é bem mais autêntico, e mesmo sem o formato heteronormativo e nem a segurança financeira da família “oficial”, é mais harmonioso e verdadeiro. Os seus membros podem até mentir para a justiça, mas não entre eles.
Neste novo lar de Guida, não há homens, evidenciando algo que vai ocorrer em vários momentos: a ridicularização do prazer do homem, o que fica claro nos orgasmos masculinos, que são desengonçados e quase cômicos, sendo até satirizados pelos próprios personagem, como o pai Gusmão e a amiga Filomena quando imitam um ato sexual. No entanto, o filme também demonstra como esse impulso, apesar do escárnio, é o que mobiliza quem tem mais poder. Eurídice ri do pênis do Antenor, mas isso não o impede de ter relações sexuais com ela em uma banheira mesmo com ela passando mal. A relação desajeitada também é autoritária pois não esconde o desconforto da mulher enquanto Antenor se impõe sobre ela. Mesmo quando Eurídice está treinando no piano em casa, seu marido se aproxima dela e insiste em ter uma relação, a finalizando de uma forma que sua esposa pediu várias vezes para não terminar. É o impulso do namorado grego Guida que a leva ir para a Grécia, mesmo que ele tivesse outras mulheres na Europa. E durante todas esses acontecimentos, as mulheres raramente sentem um real prazer, mas isso não é escondido pelo filme.
Esses contrastes são escancarados justamente na formação do novo lar de Guida, que é comandado por ela e Filomena (Bárbara Santos), que se tornou sua melhor amiga, irmã e mãe. Dos personagens coadjuvantes, ela é que tem a personalidade mais delineada. Irônica, Filomena já cansou dos homens e procura prazer sozinha. Sem filhos, ajuda na criação dos filhos de outras mulheres que precisam trabalhar. O contorno familiar desse novo espaço é salientado pelos paralelos apresentados no filme, como quando é mostrado Eurídice cuidando de sua mãe doente e, depois, Guida cuidando de Filomena. Mas, ainda assim, a mãe das Gusmão nunca é aprofundada, ela é quase uma sombra. O foco é a família criada por Guida e seus companheiros.
E o final, é claro, apresenta uma tristeza potente, mas ainda assim original. A tristeza que nos atinge parte de um acontecimento específico, mas a melancolia posterior não permanece devido a um fato determinado, porém ao que obrigatoriamente completamos em nossa mente, já que o final do filme se passa já na contemporaneidade. Devido a esse salto no tempo, a imagem envelhecida de uma personagem rapidamente cria um choque e faz nós imaginarmos o que aconteceu entre esses vários anos. Na verdade, não necessariamente o que aconteceu, mas o que não aconteceu.
Sobre o final do filme, vale notar que, já nos tempos atuais, não sabemos ao certo o que os personagem pensam. No entanto, ainda assim, há um detalhe interessante: o único que sabe a senha do cofre do marido de Guida é o filho; nem a esposa e nem a filha sabiam. A senha é justamente a data do seu casamento. Quando essa informação é revelada, há até um enternecimento nas vozes, como se a escolha dos números fosse uma espécie de ato romântico. Mas a informação é importante para pensar uma certa estrutura: Antenor se apropria de seu casamento, mas fornece o seu segredo somente para o filho homem, e não para a esposa ou para a filha, como se só o homem fosse capaz.
Antenor, de certa forma, é menos incisivo do que o pai das Gusmão. Próximo da família da esposa, ele sempre tem um tom conciliador. Mas a sua perspectiva de vida também é patriarcal, criticando qualquer possibilidade de independência artística de sua esposa. Essa continuidade é acentuada no final do filme, quando é revelado que Atenor sabia de um segredo terrível do pai de Eurídice. Paradoxalmente, a sua esposa, já envelhecida, ainda fala dele com um certo afeto. As diferenças entre o seu marido e seu pai demonstra como uma certa estrutura arbitrária de poder pode permanecer na família, mesmo com um invólucro, aparentemente, mais atenuante. Ou seja, mesmo com personalidade distintas, Atenor e seu sogro são pessoas terríveis.
O contraste entre as duas temporalidades que ocorre no final do filme também influencia bastante a nossa recepção, principalmente porque um filme nunca é um filme isolado no tempo, mas ele é completado pelos espectadores, com todas suas experiências, memórias e sentimentos. Dito isto, no início, A vida invisível pode até parecer ser uma bela obra que irá contar uma história já contada anteriormente, mas, felizmente, os desvios já comentados o transformam um um melodrama com personalidade própria. Contudo, além disso, o mais triste é perceber como essas histórias de exclusão e misoginia que pareciam tão localizadas em um tempo distante, como a década de 1950, estão retornando com força nos dias atuais.
Elas nunca pararam de existir, é óbvio. Mas hoje em dia se percebe um retrocesso intenso na sociedade, e os retrógrados parecem ter orgulho em retrocederem. Nas poucas falas do pai das irmãs Gusmão, é repetido palavras como desgraça e vergonha para comentar a situação de sua própria filha. Esse discurso empoeirado, que situa a mulher em lugares domésticos e não aceita o diferente, é bem século passado, mas também está na boca de vários governantes e apoiadores contemporâneos. A falta de ênfase nos opressores das Gusmão ganha força até nesse paradoxo. No final, fica nítido que esses homens fizeram coisas absurdas e horríveis, mas a mesquinharia de suas decisões não são alanvacadas pela ficção. Nós somos mais afetados pelas saudades que as duas irmãs sentiam uma da outra, pelos dores e descobertas de suas próprias trajetórias. Se o foco fosse o atrito, provavelmente iríamos direcionar nossas raivas para um outro personagem. Mas escolhendo focar na subjetividade de quem sofre, demonstrando que nem sempre a opressão define totalmente um indíviduo, A Vida Invisível vai além, podendo transformar uma indignação em uma reflexão, uma reflexão capaz de jogar luz sobre os nossos estranhos dias.
*Esse texto faz parte da cobertura do Cinemascope da 13ª edição da CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.
A Vida Invisível
A Vida Invisível
Ano: 2019
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser, Inés Bortagaray e Karim Aïnouz, baseado no romance homônimo de Martha Batalha
Elenco principal: Julia Stockler, Carol Duarte, Bárbara Santos, Gregório Duvivier e Fernanda Montenegro
Gênero: Drama
Nacionalidade: Brasil