Uma imensidão verde e ondulante repleta de sons de ondas e pássaros marinhos. De repente, um barquinho de velas vermelhas corta a paisagem. Ao contrário do que se imagina, ele não está navegando em água, mas sim em um mar de cana de açúcar. Essa é a primeira cena de Açúcar, novo filme de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira.
A bordo da pequena embarcação está Bethânia (Maeve Jinkins), que retorna ao Engenho Wanderley, lugar onde nasceu e viveu durante a infância. Ela viaja para salvar as decadentes terras da família de serem vendidas. Próximo ao engenho vive uma comunidade negra, que tem na Casa de Cultura Cabo Verde seu centro nervoso. Imbuída de preconceitos, Bethânia precisa agora lidar com dificuldades financeiras e com os estranhos acontecimentos que rondam a casa da fazenda.
Concluído em 2017, Açúcar retrata o contexto político vigente no país: um saudosismo conservador onde as minorias eram silenciadas pelas maiorias, onde empregados negros deviam subserviência e gratidão aos patrões brancos e onde a única cultura válida era aquela que vinha do exterior. Todas essas características se manifestam em Bethânia, que demonstra grande apego à tradição e a um passado que não existe mais.
Racista em seu cerne, a personagem tem relações conturbadas com a diarista Alessandra (Dandara de Morais), a quem obriga usar uniforme e entrar pela porta dos fundos, e com Zé Maria (José Maria Alves), líder da Casa de Cultura. Apesar das dificuldades financeiras, Bethânia preza pelo bom nome de sua família e reitera antigos gestos de intolerância para deixar claro que pertence a uma classe social mais elevada que os habitantes locais.
É interessante notar também a relação dos personagens com as construções que integram o Engenho Wanderley. Bethânia possui um excesso de zelo pela casa grande, o que mascara uma saudade do passado escravocrata de sua família. A deterioração gradativa do ambiente ao longo do filme representa o esfacelamento da suposta elite a qual faz parte, que hoje enfrenta problemas financeiros e tem seus valores questionados.
Já Alessandra e Zé Maria se concentram na Casa Cabo Verde, espaço iluminado e cheio de vida, refletindo o poder do resgate cultural de um povo. A senzala de seus antepassados foi completamente derrubada, porém não esquecida, e atua como uma grande ferida em processo de cicatrização.
A história ganha novos ares com a chegada de Branca (Magali Biff), madrinha de Bethânia. Representando o próprio conceito do “cidadão de bem”, a personagem é o estereótipo da sudestina que viaja ao nordeste com um olhar de colonizadora. Branca faz graça com o sotaque alheio, visita a senzala como ponto turístico e trata os negros como “essa gente”, mas, assim como Bethânia, não hesita em sexualizar o corpo de Zé Maria.
Apesar de abordar temas tão urgentes, Açúcar pesa a mão na hora de retratá-los. O racismo de Branca e Bethânia aparece alguns níveis acima do ideal, tornando suas ações um tanto exageradas. Longas recentes como Bacurau (2019) conseguem abordar esse tipo de relação de maneira mais sutil, porém igualmente impactante. Já o ser aberrante, do qual temos apenas vislumbres, não gera suspense, mas sim uma leve curiosidade. Nesse sentido, filmes como A Sombra do Pai (2018) são mais bem-sucedidos em deixar o público desconcertado com o que (não) se vê.
Ainda sim, o longa de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira acerta em outras áreas. A fotografia, por exemplo, é repleta de tons tão verdes quanto o mar e, graças a quadros limpos e organizados, cria um bom contraste entre luz e sombras. Já o roteiro possui pitadas de um realismo mágico e utiliza bem espelhos narrativos e momentos de contemplação. Ao denunciar uma elite decadente que se agarra aos privilégios de classe conquistados a partir da escravidão, Açúcar nos ensina a importância de aceitar nossas origens, acalmar as tempestades internas e velejar rumo a felicidade.