Em uma cena de A marcha sobre Roma (1962), fascistas italianos recebem a notícia de que perderam uma eleição. Irascível, um integrante do grupo grita que o processo foi um golpe e exige uma recontagem. Você sentiu alguma semelhança com o discurso de um político atual? Infelizmente, o filme de Dino Risi, ainda hoje, pode incitar no espectador brasileiro reflexões sobre os tempos atuais, em que há a possibilidade da vitória de Jair Bolsonaro. O objetivo deste texto é analisar o filme italiano e indicar algumas relações com a política brasileira, inspirado muito pelo debate gerado sobre a obra no Cine Sorpasso, um cineclube de BH que exibe mensalmente comédias italianas. Não irei relacionar o autoritarismo de líderes fascistas com a figura de Bolsonaro. O fascismo, no filme, é representando mais como uma forma violenta de viver na sociedade ou de se chegar ao poder, do que como um sistema político e ideológico. Desenvolverei a relação nesta linha. Além disto, é interessante pensar como os protagonistas da obra de Risi não são fascistas truculentos ou líderes de destaque, mas homens ordinários que aderiram ao movimento quase por acaso. Ainda que essa condição não elimine ou justifique a violência compactuada pelos personagens, ela indica que nem todos os corpos que compõem uma massa política conhecem ou se definem completamente pelo discurso de ódio de um líder. Ou seja, em tempos turbulentos, a alienação pode ser tão perigosa quanto a violência.
A marcha sobre a Roma retrata o inicio do movimento fascista na Itália a partir dos personagens Domenico Rocchetti (Vittorio Gassman) e Umberto Gavazza (Ugo Tognazzi). Eles são homens pobres, sem casa própria e veteranos de guerra, que, apesar da condição financeira, vivem de uma maneira descontraída o dia a dia. A miséria existe, mas não é trágica. Enquanto procura o que comer, Domenico é abordado por um antigo capitão para entrar em um movimento que estava surgindo, o fascismo, lhe apresentando o seu programa político. O personagem aceita o convite, porém não por questões ideológicas, mas principalmente porque percebeu uma possibilidade de vida melhor, chamando, posteriormente, o seu companheiro Umberto, que é mais sério e desconfiado. O crescimento do fascismo até a marcha sobre Roma é mostrado sempre a partir desses personagens periféricos. Ao se aproximar do poder, o movimento cada vez mais contradiz o seu programa inicial, além de praticar atos mais violentos, ocasionando a fuga de Domenico e Umberto.
A obra de Dino Riso é uma commedia all’italiana, sendo um exemplo de filme histórico do gênero, ao resgatar eventos relativamente recentes da Itália, mas os tratando de uma forma cômica e crítica, a exemplo de A Grande Guerra (1959), de Mario Monicelli. O filme não expõe as hipocrisias e excessos autoritários dos fascistas, ou ainda o efeito que eles tiveram sobre a sociedade. Tais aspectos são mais fortes em outra comédia histórica italiana: Gli anni ruggenti (1962), de Luigi Zampa. Em A marcha sobre Roma, o fascismo surge principalmente como uma força manipuladora e oportunista, que, a partir de um discurso atraente e simplificador, reúne desde seguidores fanáticos até leves admiradores, mesmo que todos sejam violentos. Ao diferenciar os fascistas a partir de uma narrativa interna ao movimento, o filme se torna atual não pela relação direta entre Bolsonaro e Mussolini, mas pela maneira como mostra que qualquer pessoa pode engrossar um discurso de ódio, mesmo sem ter consciência disto.
O filme começa com dois longos planos de cerca de dois minutos. Neles, a condição marginalizada do personagem Domenico é corporificada na performance do ator, já que seu corpo não se esgota em si mesmo, nas suas reações ou nos diálogos com as figuras principais da ação. Pelo contrário, ao longo do filme, ele se relaciona com tudo o que está localizado no espaço onde se movimenta, como um casal de ricos, um cachorro, um pedinte, uma mulher bonita, uma vaca ou o prato de um garçom. Uma primeira motivação para essa horizontalidade da performance se dá na vontade de sobreviver, pois parte de seus gestos buscam matar a fome ou encontrar um lugar mais seguro e confortável na sociedade. Obviamente que nem tudo se resume à isto, pois algumas movimentações buscam também o bem viver, já que Domenico é um vagabundo bon vivant e malandro, como na cena do restaurante, por exemplo, em que pisca para uma mulher em outra mesa, ou ainda depois, quando se aproxima de uma camponesa que estava ao lado de Humberto. Esta busca por diferentes saciações irá mover Domenico, que só quer viver um dia após o outro, sem muita reflexão.
A escolha deste personagem como protagonista não é gratuita, pois a visão do fascismo a partir de um dândi periférico é completamente diferente da visão que teríamos se o personagem tivesse uma condição social mais abastada. Se o filme mostrasse grandes figuras autoritárias, talvez conheceríamos um pouco mais a ideologia fascista. Porém, menos interessado em abordagens didáticas, A marcha sobre Roma busca, principalmente, mostrar as relações contraditórias entre os integrantes do movimento. Nesta representação, o roteiro do filme tem um recurso dramatúrgico essencial: o programa político fascista, que está sempre nas mãos de Umberto. No inicio, ele é apresentado pelo capitão em todo seu esplendor e clareza, mas, posteriormente, o próprio movimento contraria vários artigos que estavam no programa, como a liberdade de imprensa, a abolição de títulos nobres e o fornecimento de terras aos lavradores. Umberto é o único que percebe a incoerência crescente, riscando cada artigo do programa ao presenciar diferentes contradições. No final, ele e seu amigo rasgam o documento. Entretanto, ironicamente, enquanto os artigos do programa são riscados, o movimento fascista ganha cada vez mais força, e o filme realmente termina com o movimento em alta na Itália. Ou seja, o fascismo ganha mais peso não devido ao cumprimento de seus princípios, mas a partir da intensificação da violência. Os fascistas não enxergam essa transformação na ideologia de seus líderes.
A construção parece coerente com os dias de hoje. O bolsonarismo não é uma ideologia com uma filosofia própria, mas principalmente uma forma violenta de posicionamento. A discussão sobre a relação entre fascismo e Bolsonaro já está rendendo interessantes discussões. Aqui, cito o comentário da pesquisadora Esther Solano, que caracteriza o político como um fascista fundamentado no conceito de inimigo interno: “Ele mobiliza, sim, uma ideia de nação excludente, só que essencialmente exclui os de dentro que são a principal ameaça. […] Ele propõe um país onde só os “homens de bem” sejam cidadãos. O restante somos inimigos, bandidos, portanto aniquiláveis fisicamente ou silenciáveis”. A correspondência que proponho entre A marcha sobre Roma e o contexto atual não é tão rica desta forma, pensando as adaptações do fascismo bolsonarista, principalmente porque o filme de Dino Risi não aborda a ideologia fascista, e também porque Bolsonaro não tem uma ideologia própria, porém, citando FHC, somente a vontade de mandar. Mas ainda é possível pensar uma relação entre a cegueira dos apoiadores de Mussolini e a dos eleitores do Bolsonaro sobre as contradições de seus líderes.
Os seguidores de Bolsonaro, por exemplo, se esquecem de suas ligações com corruptos durante a carreira parlamentar, apesar dele se apresentar como uma solução para a corrupção brasileira (sobre esta ligação entre o velho e o mais velho ainda, o contraste ainda ecoa A marcha sobre Roma quando o filme mostra a relação entre fascistas e nobres). O seu despreparo absoluto para assuntos complexos como a economia – vide estas respostas constrangedoras para a GloboNews ou este momento no primeiro debate presidencial – também não afeta a decisão de muitos eleitores. Se é para falar de pressupostos concretos, uma leitura atenta sobre as suas propostas para educação já indica várias limitações. O político ainda apresenta um certo oportunismo ao condenar as urnas que elegeram ele próprio e vários de seus seguidores, incluindo os filhos, ou ainda na maneira como, atualmente, tenta se apropriar do Bolsa Família, programa que durante anos ele mesmo criticou, em uma tentativa de conquistar votos no nordeste. Tudo isto em volta à uma paranóia anticomunista que desde a primeira metade do século XX justifica decisões autoritárias no Brasil. A diferença é que antes existia um contexto histórico condizente a um binarismo, mas hoje, em um mundo globalizado, se apegar a essa paranoia só indica uma falta de conhecimento sobre a nossa história.
Para além destas contradições, ainda existe a questão moral, já que o candidato prega valores cristãos e defende o bem da família, mas incentiva violência e discriminação. De maneira paralela, em A marcha sobre Roma, os fascistas pregam igualdade, mas praticam várias violências entre eles próprios e com os outros. Nos poucos momentos em que as mulheres aparecem no filme, por exemplo, elas são abordadas de forma violenta pelos fascistas, inclusive pelo próprio Domenico, que chega a chamar uma de vadia e abordar abruptamente outras duas. A forma periférica como as mulheres aparecem no filme aponta a relação entre o fascismo e uma masculinidade estereotipada. Lembrando o comentário de Pedro Cardoso sobre Bolsonaro, um fascista é um homem iludido com a própria virilidade. Ou seja, tudo parece se resolver por um gesto violento que, em suas mentes, é inerente a condição masculina – algo plenamente condizente com a postura de Bolsonaro, que, além de agressivo com mulheres e minorias, parece acreditar ser capaz de solucionar os problemas do Brasil, apesar da falta de conhecimento. Não sei o que é pior, a ignorância do político ou sua personalidade.
A contradição entre o populismo dos fascistas e a posição dos trabalhadores é abordada visualmente no filme de Dino Risi. Ainda que os fascistas preguem o bem do povo, o povo real se mostra sempre como uma força interruptora e contrária aos seus movimentos, como bem comentado no Cine Sorpasso. Não há um grande personagem proletário, mas mesmo que o povo geralmente apareça distante da câmera, com rostos anônimos e corpos distantes, eles sempre colocam empecilhos para a locomoção dos camisas pretas, jogando pedras ou entrando em conflito direto. Contudo, mesmo assim, os fascistas acreditam saber o que é melhor para todos. Esse gesto popular, infelizmente, não é majoritário atualmente no Brasil.
A posição dos dois personagens principais pode incitar reflexões no espectador. Domenico, por exemplo, desperta facilmente uma certa empatia, já que ele é um malandro bon vivant. Contudo, apesar de seu carisma, ele é, durante grande parte do filme, um membro do movimento fascista. Não é um fascista oficial, ciente de todos os conceitos ou medidas do movimento. No entanto, mesmo em sua alienação, o personagem justifica atos errados, como pagar o restaurante com fotos ou atacar uma redação da imprensa – somente no final é que há um desvio quando ele presencia um assassinato. O fato de não ser difícil criar um elo com um personagem que, querendo ou não, foi um fascista, é algo complexo propositalmente. Contudo, pensando nos dois protagonistas, isto não significa que eles são simples miseráveis manipulados por forças externas. Umberto, por exemplo, é tão pobre quanto seu amigo, porém é mais cético, representado um integrante do fascismo que, apesar de vestir a camisa preta, pensa um pouco mais sobre o que está acontecendo. Além disto, mesmo que Domenico não perceba as contradições do movimento que ele adere facilmente, isto não anula a carga de violência de sua própria personalidade, identificada nos seus contatos misóginos e violentos com as mulheres. A condição é interessante para pensar o eleitorado de Bolsonaro, que pode apresentar tanto uma camada alienada (nos eleitores que não gostam de discutir ideologias ou política), quanto opressora, ou as duas. Contudo, o desvio, esperançoso, de Domenico ocorre quando a parte violenta de sua personalidade não toma conta totalmente dos seus atos, e o mínimo de senso crítico que ele possui, já o motiva a se distanciar do fascismo.
Domenico, um manipulado. Umberto, um desconfiado. Mas ambos fascistas. As posições e nuances parecem questionar a ideia de massificação dos grupos que seguem uma determinada ideologia. Isto porque o espectador do filme sabe o que é o fascismo italiano e no que ele acarretou, mas ao focar em dois integrantes ordinários do movimento, a obra indica que existe a possibilidade de reflexão e abertura em um ou outro integrante de marchas que pregam discursos de ódio. A possibilidade de mudança, para nós, é um alento, já que mais de 49 milhões de pessoas votaram em Bolsonaro no primeiro turno. Contudo, em A marcha sobre Roma a esperança não é total. Umberto e Domenico só fogem do fascismo quando presenciam um assassinato, mas a morte foi vista por várias pessoas, e, ainda assim, somente duas decidem partir. O fascínio de fazer parte de um grupo que se aproxima do poder cegou os outros indivíduos. E, de fato, o fascismo é uma força política vitoriosa no final. Aqui, Bolsonaro ainda é o mais cotado para a presidência. Mas A marcha sobre Roma também traz uma esperança de outra ordem: caso o pior aconteça agora, tomara que daqui alguns anos os brasileiros possam olhar para esta eleição com uma certa melancolia, porém reconhecendo o teor ridículo e contraditório dessas forças fascistas, à maneira do filme de Dino Risi, mas que muitos não percebem atualmente.
Ps: Independente de pesquisas, pessimismos e projeções, é necessário, no momento, fazer a nossa parte e convencer o máximo de pessoas para não votar em Bolsonaro.