Por Rafael Ferreira

Seria a vida apenas um prelúdio para a morte? Seria a morte o fim de nossa existência? Seria a existência a razão de nossa vida? José Mojica Marins levanta estas e outras questões no seu quinto filme, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), imortalizado como o primeiro filme de horror do cinema brasileiro, e o primeiro filme que conta com a presença do personagem por ele criado, Zé do Caixão – até hoje a relação entre o criador e a criatura é quase indissociável.

A todos aqueles pseudo-intelectuais preconceituosos que se encontram sozinhos em casa, e tiverem que ir até a cozinha para fazer o lanche da meia-noite, ou simplesmente ir tomar um copo d’água,… não leiam este texto! Vão embora!

 

Cinemascope - A meia-noite levarei sua alma 2

Tarde demais! Vocês não acreditaram. Querem mostrar uma coragem que não existe? Pois então fiquem! Sofram! Leiam…

 

O filme inicia de uma maneira um tanto incomum e arriscada, mas que mostra a confiança de Mojica na direção: uma velha cigana alerta aos céticos, como o próprio protagonista do filme, para saírem do cinema caso tenham que passar por ruas escuras ao voltarem para casa. Numa época em que a superstição representava uma forte influência na vida das pessoas, principalmente em cidades interioranas como no filme – as pessoas evitavam cruzar caminho com um gato preto; não contavam estrelas, pois fazia surgir uma verruga; não deixavam tesoura aberta para não se sentirem mal; não varriam casa durante a noite, pois isto era um convite para a morte; não passavam por uma encruzilhada à meia noite, para não encontrar com o diabo – este tipo de alerta deveria ser muito convincente. Já nesta introdução vemos o primeiro grande mérito do filme, pois ele dialoga com dois tipos de públicos diferentes: aquele supersticioso já citado, e o cético que debocha e não respeita as crendices de terceiros.

Durante um enterro, o icônico personagem tem sua primeira aparição. Munido de capa preta, cartola, barba espessa, e unhas longas, o coveiro presta seus sinceros sentimentos à família do falecido. Ué, cadê o sádico Zé do Caixão que eu ouvi falar? Para quem não sabe, Zé do Caixão é tão humano como qualquer um de nós, com qualidades – a compaixão mostrada nesta cena, e no momento em que ele defende uma criança dos maus tratos de seu pai –, com defeitos – o sadismo já mencionado –, com dúvidas e questionamentos – apresentadas no prólogo –, com desejos e motivações – ter um filho –, com medo e remorso, mas o que o torna interessante é ver algumas destas características se sobressair e sua determinação para conseguir o que quer, a começar pela carne de carneiro durante a semana santa, soltando uma das frases mais memoráveis do longa, “hoje eu como carne, nem que seja carne de gente”, o que nos revela mais algumas características do personagem: 1) seu temperamento explosivo; 2) Zé do Caixão não tem nenhum respeito pelas tradições religiosas, pelo contrário ele zomba dos fiéis durante a procissão – por sinal, é uma cena muito bem realizada.

Cinemascope - A meia-noite levarei sua alma

Seu verdadeiro nome é Josefel Zanatas – não confunda o “Z” com o “S” –, mora com Lenita, uma mulher que o ama acima de tudo, capaz de perdoá-lo mesmo sabendo que ele cobiça Terezinha, a noiva de seu único e melhor amigo, Antônio, a quem ele não hesita em trair a amizade ao roubar um beijo de sua amada. O seu verdadeiro interesse nela não são seus “lábios de víbora”, mas o seu ventre. Zé do Caixão almeja obter a imortalidade através do sangue, gerando um filho que dará continuidade à sua linhagem, e infelizmente Lenita é estéril, a mulher que antes lhe trouxera felicidade, agora representa apenas uma pedra no seu sapato e, seguindo o pensamento do personagem a mulher que não pode procriar, não merece estar viva, e matando-a, ele estaria fazendo um favor à humanidade.

Entra em cena o sádico Zé do Caixão, que não vê problema algum em decepar os dedos de um jogador de pôquer que não aceita perder, ou açoitar um senhor que só queria proteger uma moça dos assédios do coveiro. Zé do Caixão se impõe pela força e passa por cima de todos para conseguir o que quer, se para se aproximar de Terezinha ele tiver de matar sua esposa e o seu melhor amigo, ele o fará, da forma mais cruel que puder. Lenita é a primeira vítima, e em seguida o seu amigo, que tem sua morte anunciada por uma cigana – aquela mesma da introdução – durante uma consulta de leitura de mão, a velha também anuncia uma punição para Zé, o coveiro então reage explosivamente por não suportar a idéia de que alguém se aproveita da ingenuidade das mentes sugestionáveis – ou então a cigana é uma pessoa honesta, pena que Zé não está lá para presenciar o momento em que ela recusa o dinheiro de Antônio.

CInemascope - A meia-noite levarei sua alma

Faremos uma pequena pausa para voltar no tempo e ver o que aconteceu no Brasil em 1964. O presidente João Goulart havia sido derrubado do poder, a posição fora ocupada pelo Marechal Castelo Branco, é o início do regime militar, um período que representa uma mancha na história de nosso país, marcado por repressão e censura aos meios de comunicação e artistas. Os diálogos exprimidos por Zé do Caixão eram um prato cheio para que a ditadura os considerasse como “ataque” ao regime, e até mesmo como uma crítica. O filme fora lançado em alguns estados e banido em outros, alguns comitês se preocupavam muito mais com a ideologia defendida pelo personagem, frases como “Crer em quê? Num símbolo? Numa força inexistente criada pela ignorância?”, do que com a violência retratada. A ideologia atéia e o caráter duvidoso do protagonista, até então inexistentes no cinema brasileiro, permanecem provocantes ainda nos dias atuais, ouso dizer que isto faz deste filme uma obra à frente do seu tempo.

Com Antônio e Lenita fora da jogada, Zé do Caixão está livre para cortejar Terezinha, mas a moça não facilita, e o coveiro usa a força física para depositar o seu sêmen nela. Não suportando o trauma por ser vítima de tal abuso, Terezinha pensa em se matar, e para completar, ela diz em tom de ameaça que ele não terá paz, pois à meia-noite ela levará sua alma. Como o cético que ele é, sua primeira reação é debochar – e roubar duas garrafas de cachaça de um ritual de macumba –, já a sua segunda reação… remorso, sentimento de culpa, ansiedade, medo, principalmente depois de ver o corpo sem vida de Terezinha – todas essas emoções muito bem interpretado por Mojica –, e uma dose de temor às forças sobrenaturais. Mas estas sensações logo passam quando Zé do Caixão procura sua próxima escolhida para gerar seu filho.

Cinemascope - A meia-noite levarei sua alma (2)

A primeira escolha é Maria, que trabalha no bar, e por causa dela, Zé do Caixão espanca um homem com uma coroa de espinhos retirada de uma imagem de Jesus Cristo. A segunda opção é uma viajante descrente assim como ele, a quem ele acompanha até a casa de sua tia, pois nenhum dos outros clientes tem coragem de passar próximo ao cemitério no dia dos mortos, com medo de avistarem a procissão dos mortos. “Procissão dos mortos! É história para fazer criança dormir!” diz Zé do Caixão, e com esta frase eu faço mais um regresso ao passado e me lembro de minha infância, morando numa cidadezinha do interior, exatamente como esta retratada no filme, era comum ouvir histórias da procissão das almas, assombrações, e até mesmo relatos de encontros com a mula-sem-cabeça. Este é mais um ponto forte no cinema de José Mojica Marins, a criação de um personagem brasileiro, e ao mesmo tempo universal, sem beber de fontes européias, tal como o vampiro, lobisomem e o monstro de Frankenstein. Cabe uma observação: o personagem do Zé do Caixão foi criado a partir de um pesadelo que o diretor teve, no qual um homem de capa preta o arrastou para dentro de um túmulo, com seu nome e data de morte – se a visão deste pesadelo lhe deixou curioso, assista à seqüência deste filme, Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver (1967) – segundo relatos do diretor, o personagem seria interpretado por outro ator, que desistiu na última hora, e depois de vários testes, nenhum satisfatório, Mojica decidiu interpretá-lo, mas havia um porém, o diretor havia deixado a barba e a unha do polegar crescer por causa de uma promessa – tais características físicas se tornaram marca registrada do personagem.

CInemascope - A meia-noite levarei sua alma

Enquanto acompanha a viajante até a casa de sua tia, o casal se cruza com a velha cigana, que curiosamente faz uma advertência ao Zé do Caixão, e não à moça a quem o estranho psicopata acompanha. A advertência vem em tom de ameaça, à meia-noite ele pagará pelos seus pecados, encontrará com a procissão dos mortos, que virá buscar sua alma.

O coveiro deixa a viajante ao seu destino e se despede. Na volta para casa, a advertência feita pela cigana começa a falar mais alto na cabeça de Zé, seria uma mudança em sua consciência? Seria seu lado humano falando mais alto? Seria medo do desconhecido? Será que tudo aquilo que ele desprezava realmente existe? Será que ele está se tornando sugestionável à crença? – uma dica para quem irá assistir pela primeira vez, e para quem já assistiu, assista novamente, e perceba a expressão que ele faz nas duas vezes em que se encontra com a cigana, como quem absorve tudo o que ela fala, ouve tudo com atenção, e para manter a postura de descrente, a manda para aquele lugar – Seria alucinação? Bem, este é o momento em que você expectador irá tirar suas próprias conclusões. Seja ela qual for, não há como sair indiferente após ver este filme.

Cinemascope - A meia-noite levarei sua alma (3)

Em 1964, À Meia-Noite Levarei Sua Alma foi um grande marco para o cinema nacional, serviu de influência para vários jovens cineastas em sua época – e ainda é –, contribuiu para a criação de uma indústria cinematográfica auto-sustentável em São Paulo, o movimento chamado “Boca do Lixo”, que teve seu auge durante a década de 70, e seu declínio nos anos 80. Infelizmente este movimento é menosprezado por fãs de cinema preconceituosos, teve várias de suas obras perdidas para sempre, as distribuidoras não têm interesse em relançar, e a região onde este cinema floresceu – no centro de São Paulo, próximo à estação de trem e à antiga rodoviária – hoje é ponto de prostituição e venda de crack. Segundo o próprio Mojica, o cinema nacional só existe hoje graças à Boca do Lixo.

Agora que você já conhece o filme que deu origem à saga do Zé do Caixão em busca da mulher perfeita que irá gerar um filho perfeito, que tal conhecer outros filmes com o personagem? Assista Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver (1967) e Encarnação Do Demônio (2008), e futuramente os planos para um próximo filme serão concretizados.