O título no Brasil é A Viagem, que não tem nada a ver com o título original, e ao mesmo tempo tem tudo a ver no sentido figurado, pois a história desse filme é mesmo uma grande ‘viagem’. Alguns colegas mais espiritualizados acham que o título em português é uma referência a uma antiga telenovela brasileira de Ivani Ribeiro sobre encontros e desencontros na vida de personagens ao longo de suas reencarnações. Será ?!
A Viagem dura quase 3 horas e contem seis tramas in(ter)dependentes que acontecem em distintos lugares no tempo – do século XIX a um futuro pós-apocalíptico nuclear – mas que, em algum momento histórico, ou em vários momentos ‘dramáticos’, podem se conectar. Por exemplo, cada história gira em torno de um documento autoral [um diário, uma carta, um artigo, um livro, uma história em quadrinhos, um filme] que foi confeccionado em outra história e sobreviveu no tempo. Outro exemplo: em todas as histórias o personagem central tem marcado no corpo, como uma tatuagem ou um sinal de nascença, a imagem de um cometa.
Não. As diferentes narrativas (in)felizmente não convergem para um ponto de encontro, ao contrário, elas se chocam aqui e ali num insondável quebra-cabeça cujo objetivo é desafiar a suposta esperteza do espectador. E a meu ver, é justamente aí que reside o maior mérito do filme: ele nos tira do mero lugar de audiência passiva, e nos obriga a intervir ativamente com nossa inteligência para trazer sentido ao filme, ainda que postumamente.
O longa começa tranqüilo. É fácil acompanhar os saltos entre as histórias, pois eles inicialmente acontecem em média a cada 10 minutos, cada história tendo seu estilo e se passando num tempo cronológico único, com seus cenários, personagens e gênero próprios. Tudo parece fácil nos minutos iniciais até que o elemento ‘elenco’ nos traz o primeiro fator complicador. Os mesmos atores retornam em todas as histórias, na pele de distintos personagens, com outra idade e até com outro sexo, nos fazendo supor um elo subliminar unindo esses personagens. Não sei ainda. Mas isso me parece mais um artifício usado para nos conduzir (espectadores) ao grande desafio proposto: desvendar a linha invisível que costura as seis histórias aparentemente díspares.
“Nossa vida não nos pertence, desde o ventre até o túmulo estamos ligados uns aos outros. Do passado ao presente, cada crime e cada boa ação dá-nos um futuro diferente”. Personagens conhecem-se, separam-se e voltam a reunir-se em vários ciclos de vida e morte. Cada uma das histórias anuncia, revela e repassa a tese primordial da obra: a conexão entre todas as coisas, e demonstra isso através de atitudes e ações que, feitas num momento qualquer, repercutem na existência humana através do tempo, não só no futuro mas também no passado. Um gesto de bondade é replicado através dos séculos até se tornar a mola-mestra para uma revolução. Um ferimento impingido a alguém pode gerar uma cicatriz que aparece centenas de anos antes na pele de seus ‘ancestrais’.
Esses possíveis pontos de interseção vão se revelando sutilmente nos instantes em que uma história ‘salta’ para outra. Merece crédito o ótimo trabalho de montagem de Alexander Berner, pois é nesse momento de corte, ou seja, num artifício de edição, que o filme vai tecendo a sua outra história, que fica subentendida, e é o esqueleto comum das outras seis: uma historia de amor, de luta contra a opressão e em defesa da liberdade.
Cá entre nós, não é lá um roteiro nada fácil de se filmar. E nem sempre nós, espectadores, conseguimos perceber as inúmeras conexões propostas logo de cara. É um filme que precisa ser revisto, de preferência várias vezes, voltar a cenas anteriores pra se tirar uma dúvida, e pausar pra uma reflexão ou um pit-stop, antes de prosseguir. Enfim, é um filme cansativo pra se ver numa sentada só, e que certamente terá muito mais adeptos quando sair em DVD ou Blu-ray.
Terminei o longa com a sensação de ter ‘pescado’ algumas sacadas meta-filosóficas, mas também de ter ‘moscado’ em outras, talvez até mais óbvias. Meus tais colegas espiritualizados até ousaram reconstruir a “linha reencarnatória” dos personagens entre as histórias. Pode até ser que faça sentido, mas eu não consegui ver por esse prisma. A minha nuvem desenhou o filme de outra forma. Eu percebi, por exemplo, a repetição em todas as histórias do tema da Antropofagia, que aparece escancarada no canibalismo dos tribais pós-apocalípticos, ou em formas mais sutis, como na Coréia futurista onde os corpos humanos são processados industrialmente e viram alimento pros demais. E até de modo simbólico na fala de um personagem quando vomita a seguinte filosofia de botequim: “o fraco é a carne que o forte come”.
Enfim, com tanta história pra contar, pouco parece restar a dizer sobre esse filme enquanto peça cinematográfica. A produção foi delicada e caprichosa, envolvendo 4 países (Alemanha / EUA / Hong Kong / Singapura), rodada em locações na Escócia, Alemanha e Mallorca, e com orçamento estimado em 100 milhões de dólares. Ótimos efeitos especiais, produção de arte, cenografia e fotografia, além de magníficas atuações, sendo o elenco responsável por grandes momentos ao longo do filme. Além do trabalho magistral de Tom Hanks, merecem destaque as performances marcantes de Halle Berry, Ben Whishaw, Doona Bae, Hugo Weaving, Jim Broadbent, Jim Sturgess, Keith David, Susan Sarandon, Hugh Grant ..
Indumentária, cabelos e maquiagem representam um fator chave na credibilidade passada pela maioria dos personagens. Em alguns casos o ‘visagismo’ funciona eficazmente. Em outros, principalmente do meio pro fim, quando o artifício do disfarce já se torna lugar-comum na narrativa, falhas técnicas começam a ficar mais visíveis, principalmente nas máscaras, comprometendo – um pouco – a imagem de alguns personagens.
Três das histórias são dirigidas por Tom Tykwer (Corre Lola Corre; Perfume – A História de um Assassino) e outras três pelos irmãos Wachowskis (saga Matrix / Speed Racer). Depois de um certo tempo fica fácil diferenciar que histórias são dirigidas por quem, pois os trabalhos não se misturam, e cada direção mantem seu estilo inconfundível. O trio merece o mérito por ter conseguido concretizar um projeto tão arriscado, e pelos momentos de inesperada poesia cinematográfica que alcançaram nesse percurso.
Fica-nos a sensação de ter testemunhado uma meditação estética sobre a humanidade, uma experiência sensorial tempestuosa, universal e subjetiva, histórica e atemporal, por enquanto única no cinema dos dias de hoje. Filme para cinéfilos, com pretensões a cult, que ainda vai ser assunto de muito bate-papo por aí. Não vejo a hora de ter o Blu-ray pra desvendar todas as ‘suas’ tramas, ou desenhar todas as ‘minhas’ nuvens ..