Por Felippe Gofferman

No dia 19 de abril o cinema israelense perdeu um de seus rostos mais significativos da atualidade. Ronit Elkabetz, 51, começou a carreira de forma tardia, atuando em seu primeiro longa aos 26 anos, mas logo se tornando peça de destaque no cinema de seu país. A atriz, roteirista e diretora, se destacou por sua presença em cena e por interpretar mulheres fortes, mesmo sobre temas referentes ao machismo da sociedade em que vive.

Recentemente lançou seu último filme, o belíssimo O julgamento de Viviane Amsalem (2014), que dirigiu e roteirizou com seu irmão, além de protagonizá-lo de forma brilhante.

Entre seus trabalhos vale destacar uma obra que, apesar de não ter uma repercussão duradoura, foi o indicado de seu país para o Oscar, mas não teve sucesso em sua candidatura simplesmente por uma falta de entendimento por parte da Academia de seu ar pacifista e intimista. Em homenagem a essa grande atriz, hoje vamos destrinchar um pouco da arte e do figurino do  belíssimo A Banda (Israel, 2007).

Em A Banda, acompanhamos uma trama leve e divertida, mas que expõe um delicado tema: a rivalidade entre Israel e Egito. Os membros da Orquestra Policial de Alexandria, ao pegar um ônibus errado devido à comunicação falha com o povo irmão, chegam a uma pequena comunidade israelense onde precisam passar a noite para que possam, na manhã seguinte, rumar em direção à cidade na qual fariam um concerto.

A ausência de hotéis no isolado vilarejo cria uma relação entre os moradores locais e os inesperados visitantes que demonstra quão despropositadas são o eterno sentimento de desconfiança e as batalhas travadas entre os países vizinhos.

O filme possui um belíssimo trabalho de arte que fundamenta a posição dos personagens e seus conflitos, dotando-os de personalidade visual ou mesmo deixando-os neutros, como no caso da banda.

O azul não esconde as pequenas listras vermelhas

O azul não esconde as pequenas listras vermelhas

Um longo corredor apresentado por extenso, os uniformes que os torna uma unidade, postura militar e a paleta fria que recebe o grupo no país, em tese, hostil. Esses elementos constroem o clima de A Banda e conferem ao longa um tom poético ao lidar com os conflitos entre os países apenas de maneira subjetiva, mostrando que o que realmente importa são as pessoas que vestem o uniforme e não a roupa em si.

O azul claro parece tirar um pouco da personalidade de cada um, mas a postura e o decorrer do filme são responsáveis por individualizar cada membro do grupo.

Dina, personagem vivida por Ronit Elkabetz, serve os músicos recém-chegados em seu restaurante e os oferece um lugar para dormir.

Dina, personagem vivida por Ronit Elkabetz, serve os músicos recém-chegados em seu restaurante e os oferece um lugar para dormir.

Apesar do tom sóbrio, até fúnebre, de sua roupa ao encontrar os músicos, é possível notar que sob o casaco preto desbotado há uma indicação de que a cor escura é uma representação do estado de espírito da personagem que está esperando para ser mudado. Ao seu redor, um ambiente branco integrado a camiseta que Dina usa por baixo e pinceladas de cores pontuais, mas que já inserem o vermelho como elemento presente na construção semiótica da personalidade da dona do restaurante.

A expressão corporal de Ronit Elkabetz, outro ponto essencial na construção de sua personagem, são marcados e indicam a força e o controle que Dina tem de tudo ali. No momento do frame ela observa os musicistas de forma quase invasiva, a personagem ali já decide suas próximas ações.

Linhas

Linhas

Um plano que se assemelha ao anterior, criando uma identidade visual ao apresentar Dina alimentando seus convidados inesperados. Sobre a pia, ela corta a melancia revelando o intenso vermelho do seu interior. O plano ainda destaca as linhas do ambiente, horizontais e verticais, que conferem um ar monótono e conservador ao ambiente, ar esse que é respaldado pela roupa do dia-a-dia da personagem e seu cabelo preso pela praticidade.

A dona do restaurante se encontra no ponto convergente da cozinha, o alvo do olhar de dois membros da orquestra e do nosso.

À esquerda o maestro e cantor da banda, à direita o jovem galã e sobre a mesa pedaços de melancia cortados e servidos aos dois.

À esquerda o maestro e cantor da banda, à direita o jovem galã e sobre a mesa pedaços de melancia cortados e servidos aos dois.

Dina demonstra interesse por Tawfiq, o maestro tenente-coronel interpretado por Sasson Gabai, enquanto o jovem Haled (Saleh Bakri) espera ser notado e ter uma oportunidade com a personagem.

Em sua cadeira de balanço velha, Dina se apresenta como se recebesse conhecidos. Seu corpo demonstra a total falta de interesse da mulher em seguir um protocolo mais formal ao receber os estranhos. Ela está em casa, ali é seu território e ela não vai mudar por suas visitas.

Tawfiq, visivelmente desconfortável em sua poltrona sem braços de apenas um lugar, contrasta diretamente com o descontraído Haled, mas o corpo de Ronit manda sua mensagem, ela busca uma brecha na couraça do maestro.

As cortinas e o forro dos móveis estão no meio termo entre o vermelho da paixão e o preto do luto. Na lateral do plano, quase saindo do enquadramento, um ícone visual que logo se repetirá: Flores vermelhas.

Sensualizando

Sensualizando

As unhas vermelhas descascadas sobre a mesa, também com a tinta danificada, é a manifestação dos sentimentos de Dina e uma representação de sua ânsia por uma relação platônica durante a breve passagem da banda por sua vila. A posição do pé de Dina deixa ainda mais claro o lado que ela tomou, além da total abertura que ela dá aos convidados.

Ela convida o maestro para sair e o tímido e conservador militar recusa sem muita firmeza, mas logo cede devido a um conselho de Haled, que percebeu o interesse da israelense pelo egípcio mais velho.

O longa já deixa claro sua intenção de transformar as questões bélicas e territoriais entre os países em algo exclusivo aos setores políticos, mostrando que, para os personagens, o país de origem não interfere na construção do caráter e nas relações interpessoais.

A Banda

A resposta positiva de Tawfiq faz com que Dina vista seu sentimento reprimido. As flores no vestido não retiram completamente o preto de seu vestuário, mas o dominam, deixando-a mais despojada e ativa quanto a possível relação com o maestro.

A bela mulher ainda solta seu cabelo negro e espesso e toma a liberdade de pedir a Tawfiq para deixar o chapéu, sendo prontamente atendida pelo músico. A beleza de Ronit Elkabetz, já destacada em sua roupa cotidiana, é realçada, mas o peso militar sobre o personagem de Gabai é uma constante. Seu tom grave dificilmente é deixado de lado.

A Banda

A maior liberdade obtida nesse novo momento de Dina é o que provoca uma interrupção na evolução da troca entre os personagens. Tawfiq se mostra relaxado pela primeira vez no longa ao mostrar como se rege uma orquestra, mas logo a conversa avança e um assunto volta a afastar os dois. A morte da mulher do maestro se revela o motivo dele ser fechado e de não permitir uma maior aproximação da apaixonante personagem de Ronit.

Luz, sombra e a volta do luto.

Luz, sombra e a volta do luto.

Percebendo a ruptura na relação recém construída, Dina retoma o tom fúnebre quando o músico pergunta se podem voltar para casa.

A fotografia também tem papel importante na cena, pois a iluminação delimita a área e destaca o novo uso de linhas no enquadramento, dessa vez sendo dispostas verticalmente em sua maioria, mas com uma longa linha horizontal cortando o plano. O luto, na verdade, é de Tawfiq e os dois caminhos cruzados dos dois protagonistas se tornam apenas um acaso.

A Banda

À porta do prédio de Dina, mais uma grande composição fotográfica. A iluminação separa fisicamente os dois e antecede o momento dramático em que Tawqif volta a falar da morte da mulher.

O vestido vermelho ainda é visível sob o tecido preto que cobre Ronit, mas perdeu suas curvas e a força de suas cores. Apesar de entender os motivos do maestro, Dina ainda oferece vinho para o homem, mas sobre a desculpa de que precisa acordar cedo para pegar o ônibus certo ele deixa a decidida israelense com a companhia de Haled.

Aquele momento é difícil para ambos. Dina, que se interessou pelo maestro, e Tawfiq, que por mais que tente não consegue transpassar seu luto. A personagem resume a noite e sua vida em uma frase: “Minha vida é um filme árabe”.

A Banda

Um belo plano que deixa claro o resultado negativo da noite para os personagens. Haled ocupa agora a cadeira de Tawfiq, enquanto ao centro a sua cadeira está vazia. Dina e Haled se sentem deslocados em lados opostos do enquadramento, tendo um instrumento musical e uma garrafa de vinho entre si. O vinho que remete ao restaurante e a personalidade de Dina e o instrumento referente à orquestra, uma repetição simbólica do encontro que resultou nessa noite.

Dina, agora meio aérea, parece refletir sobre a noite e decidir se vale a pena dar uma chance ao jovem.

A despedida.

A despedida.

A personagem de Elkabetz retorna às peças sóbrias e ao cabelo preso e de maneira sutil preserva o vermelho, mas agora não é uma expressão viva de seus sentimentos como no caso do vestido.

A pulseira vermelha é uma lembrança. Seria essa recordação de Tawfiq ou de Haled? Não importa, os três personagens apenas queriam uma memória para levar daquela noite.

A banda A banda

Após a breve passagem no vilarejo, a Orquestra de Alexandria pega o ônibus para o destino correto e fecha o filme com seu concerto. O vermelho e o azul são cores presentes na trama e nessa cena fica claro o motivo da escolha dessas cores. Às costas de Haled a bandeira Egípcia tremula suas cores enquanto Tawfiq canta. Os planos contrapõem  os personagens em um jogo de foco e enquadramento.

O vermelho, o branco e o preto estão presentes na bandeira do país natal da Orquestra e no vestuário da personagem israelense, enquanto o azul da orquestra está na bandeira do país natal da bela Dina. Uma troca que representa a união entre as nações.