Por Felippe Gofferman
O cinema brasileiro é frequentemente criticado por seu sistema viciado que pouco espaço dá para uma abordagem mais autoral, mas o maior problema não está na produção desse tipo de conteúdo e, sim, na distribuição dos nossos filmes de menor orçamento. A rede de distribuição nacional não supre a demanda de conteúdo de qualidade, ainda que ele exista, se limitando a explorar as produções com o selo Globo Filmes. Os filmes independentes acabam relegados a pequenos cinemas de nicho.
Mas o que o cinema asiático tem a ver com isso? Bom, hoje mergulharemos em uma área ainda não trabalhada por aqui em relação à Coreia do Sul. Veremos como o cinema do país se renovou e pode ser usado como exemplo para uma possível retomada que tenha sucesso comercial e artístico. A origem do cinema sul-coreano será tratada posteriormente, mas cabe aqui um breve histórico para um melhor entendimento do estado atingido atualmente.
Com o fim da Guerra da Coréia e a divisão do país em norte e sul, ambos os lados tiveram que se reestruturar completamente devido a destruição resultante. Apoiando-se em um forte aliado, os Estados Unidos, e todo seu aporte financeiro, a Coréia do Sul se reergueu absorvendo muito da cultura norte-americana enquanto criava uma nova personalidade oriunda da divisão.
Os anos que sucederam a Guerra, terminada em 1953, serviram para o cinema do país renascer. De apenas 7 filmes produzidos no ano de 1955 para 90 em 1960. O boom cultural era um fato, mas ainda faltava uma escada para a crescente produção. O primeiro passo para a consolidação da indústria veio em 1962.
Park Chung-hee, cabeça do golpe militar que acabou com a chamada Segunda República, foi um dos responsáveis pela criação do “Ato cinematográfico” de 1962, um projeto que transformava a produção do país, até então independente, em uma indústria profissional.
As semelhanças começam a surgir aí entre o cinema sul-coreano e o brasileiro. A criação do “Ato” acabou por limitar a produção a empresas que conseguissem cumprir certas metas, como a produção de 15 longas por ano, e que se adequassem a uma série de burocracias. O resultado foi o fechamento da grande maioria dos pequenos estúdios e a consequente concentração da produção em nichos.
O efeito do ato sobre o cinema foi drástico. O governo passou a ter influência direta sobre as produções, possuindo inclusive políticas de premiações para as produtoras que mantivessem certos aspectos artísticos fora de seus filmes e se mantivessem realistas em suas temáticas, sem utilizar artifícios dramáticos mais autorais ou surreais.
As produções passaram a ser feitas em grande escala, mas com baixa qualidade artística. Algo muito próximo a nossa ditadura militar foi se desenvolvendo. A censura barrava as ideias mais críticas e liberava o cinema que funcionava como ópio para o povo. Melodramas e filmes de ação inspirados em Hollywood pipocavam nas salas de exibição. O principal motivo das produtoras, ao insistirem nesse tipo de cinema, era a possibilidade de, ao cumprirem a cota estipulada de filmes nacionais, terem acesso a importação de filmes estrangeiros, o que era bem mais barato que produzir os seus próprios e atraía o público sem necessidade de investimento em propaganda.
O povo respondeu ao cinema comercial produzido, porém – assim como no Brasil – haviam os transgressores que produziam de forma independente ou que conseguiam superar a censura através de trabalhos autorais mais camuflados.
Os anos se passaram e o cinema sul-coreano passou a ter uma imagem negativa devido as produções de baixo nível e da forte presença do governo através de filmes propagandistas. A solução “definitiva” para os problemas da indústria surgiu apenas no início da década de 1990.
O fim da censura e a ascensão ao poder de Roh Tae-woo, eleito democraticamente, representaram uma abertura comercial muito maior e, consequentemente, a permissão para as produtoras hollywoodianas invadirem o mercado local, o que ocasionou uma enorme crise para o cinema pouco desenvolvido do país.
O renascimento, na verdade, veio justamente do levante de cineastas frente essa situação aparentemente irreversível.
Em 1992 começa a luta dos cineastas autorais, finalmente se posicionando graças ao fim da censura, para que as leis já existentes de cotas de tela, que garantiam um número mínimo de dias de exibição dos filmes locais nos cinemas, fossem cumpridas e ampliadas.
O cinema da Coreia passa a ter um novo gás graças a uma combinação de fatores. A política de cota de tela começa a ser aplicada de forma eficiente, obrigando as redes exibidoras a manterem a exibição de filmes locais por 146 dias durante o ano. O investimento das universidades em especialização na área de cinema, resultando em uma geração que pensava cinema em todas as suas fases, e a entrada de capital das Chaebol’s (grandes conglomerados empresariais como Sony, Samsung e etc.), fizeram com que a qualidade do cinema subisse consideravelmente e garantiram o espaço de exibição para que as produtoras se mantivessem atraindo público com conteúdo de qualidade mesmo produzindo em larga escala.
O sistema de cotas é polêmico e sempre causou muita discussão. A foto acima mostra a briga de Park Chan-wook, junto com várias personalidades do cinema local, para manter a cota estabelecida, o que não deu certo. A lei foi alterada e, em 2006, os dias mínimos de exibição foram reduzidos para 73, mas vamos discutir a base de tudo isso.
A afirmação de Park é emblemática. Sem cota de telas, teriam sidos produzidos filmes como Oldboy (2003)? Provavelmente não.
O ponto principal das cotas aplicadas por lei são os avanços que elas provocam indiretamente. A audiência é cada vez mais exigente e o mercado externo cada vez mais predatório, o que deixa aos mercados menores uma única saída: apelar para a qualidade. Sabendo que seriam exibidos, produtores, instituições de ensino e os próprios diretores se sentem compelidos na direção do estudo e da melhora.
Voltando aos números, peguemos um belo filme como exemplo: O Hospedeiro (2006), de Bong Joon-ho.
O Hospedeiro é a síntese do tão diversificado cinema coreano. O filme teve um enorme orçamento para os padrões locais: 11 milhões de dólares. O que diferencia um blockbuster norte-americano de um sul-coreano, além das cifras totalmente discrepantes, é a necessidade dos realizadores asiáticos, graças a feroz concorrência do mercado estrangeiro, de entregar algo a mais que mero entretenimento.
É óbvio que todas as semanas são lançadas novas comédias adolescentes nos cinemas, mas a indústria se alimenta de diretores com forte carga autoral e que, ainda assim, passeiam pelos blockbusters conferindo qualidade a essas produções e que abordam temas importantes para a sociedade sul-coreana. As grandes produções do país apelam para a identificação para atrair o público.
O Hospedeiro tem o típico clima de thriller e é facilmente apreciado mesmo por públicos estrangeiros, mas se for analisado mais a fundo, é possível encontrar diversas críticas sociais ou mesmo referências autorais que fazem da obra um exemplo de como o cinema local se desenvolveu para melhor. Os números do filme são incríveis, sendo um dos mais vistos até hoje, tendo vendido mais de 13 milhões de ingressos, o que representa quase um terço da população do país.
O filme não é uma exceção à regra. Os seus números são altos, é bem verdade, mas se formos tomar o cinema do país como exemplo para possíveis mudanças em nossa indústria, é importante analisarmos como se mantém o sistema de exibição. Vejamos, portanto, o box office de 2013:
Filme País Público
7-beon-bang-ui seon-mul Coreia 12,8 milhões
Snowpiercer Coreia/França/EUA 9,3 milhões
Gwansang Coreia 9,1 milhões
Iron Man 3 EUA 9 milhões
The Berlin File Coreia 7,1 milhões
Secretly Greatly Coreia 6,9 milhões
Byeon-ho-in * Coreia 5,6 milhões
Sumbakkokjil Coreia 5,6 milhões
Deu tae-ro ra-i-beu Coreia 5,5 milhões
Gam-si-ja-deul Coreia 5,5 milhões
Já em 2014, o cenário foi um pouco diferente. O cinema estrangeiro entrou com mais força no país, deixando a briga pelo market share ainda mais acirrada. Embora os filmes hollywoodianos tenham tido boa participação na bilheteria do ano, um novo recorde foi estabelecido. Novamente por um filme coreano.
Filme País Público
O Almirante: Correntes Furiosas Coreia 17,6 milhões
Frozen EUA 10,3 milhões
Interestellar EUA 10,2 milhões
Hae-jeok: Ba-da-ro gan san-jeok Coreia 8,67 milhões
Chong fan 20 sui China/Coreia 8,66 milhões
Byeon-ho-in * Coreia 5,69 milhões
Gukjesijang ** Coreia 5,35 milhões
Transformers: Era da Extinção EUA 5,3 milhões
Kundo: Min-ran-eui si-dae Coreia 4,77 milhões
No limite do Amanhã EUA 4,70 milhões
* Byeon-ho-in (The Attorney) estreou em 2013. Contando com mais de 11 milhões de ingressos vendidos no período total em que ficou em cartaz.
** Gukjesijang (Ode to my father) estreou no fim de 2014, chegando a marca de 14,2 milhões de ingressos em 2015.
Quão absurdo soa para nós, cinéfilos brasileiros, haver apenas um filme estrangeiro no top 10 de 2013 da Coreia do Sul?
Fica a pulga atrás da orelha: o tão criticado sistema de cotas é realmente prejudicial aos cinemas regionais? A Coreia prova que não. O que prejudica o cinema é a falta de investimento e o pobre planejamento a longo prazo por parte das produtoras e do governo. Uma política governamental mais efetiva para proteger o nosso cinema é fundamental, mas aqueles que pensam o cinema brasileiro precisam se mover.
Uma mudança nas nossas leis não virá sozinha e não resolverá todos os nossos problemas. É necessária uma mudança de personalidade para atrair o público e fidelizar sua paixão.
A expressão mágica na indústria cinematográfica “market share” é um obstáculo a ser vencido. O cinema brasileiro abocanhou, em 2013, 18,9% do público, enquanto em 2014, apesar do aumento no número de ingressos vendidos, não passou dos 12,2%. O cinema coreano, que perdeu espaço em 2014, obteve 50,1% do total de admissões.
Em números brutos, o cinema brasileiro levou às salas 19 milhões de pessoas em 2014, enquanto o sul coreano atingiu incríveis 109 milhões ingressos vendidos para suas produções.
Quão utópico seria pensar em uma situação similar à das tabelas acima no nosso cinema? Não custa nada sonhar, mas é muito melhor agir.