Por Rafael Ferreira
Primeira regra do Clube da Luta: “Não falar sobre Clube da Luta”.
Segunda regra do Clube da Luta: “Não falar sobre Clube da Luta”.
Bem, estou prestes a quebrar as duas primeiras regras do Clube da Luta para levá-los a refletir comigo sobre este filme que o aclamado crítico Roger Ebert escreveu como “uma celebração de violência na qual os heróis escrevem a si mesmos uma licença para beber, fumar, sacanear* e bater um no outro”. Para os leitores que ainda não o assistiram, não soltarei spoiler até um determinado momento do texto.
Em Clube da Luta, Edward Norton interpreta um homem que freqüenta grupos de apoio para doentes porque isto o ajuda a dormir, mas sua terapia é arruinada quando Marla Singer (interpretada por Helena Bonham Carter) aparece num desses grupos. Durante um vôo ele conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um vendedor de sabonetes, e juntos criam um grupo onde homens como eles, infelizes com suas vidas, podem descarregar toda sua frustração em seu oponente como uma forma de terapia.
Superficialmente, Clube da Luta fala de assuntos como consumismo, da ganância das grandes corporações, porém, uma revisão pode mostrar que é menos sobre capitalismo e mais sobre como associamos nossos bens pessoais com a maneira que vemos a nós mesmos, “Eu folheava os catálogos e me perguntava ‘Que tipo de sala de jantar me define como pessoa?”, diz o narrador do filme. O tema “consumismo” poderia ser abordado no cinema de outras formas: enfatizando o desemprego, ou os problemas que as grandes corporações nos trazem, mas o filme foca no lado pessoal, mostrando aonde a ganância, a dependência das grandes corporações, pode nos levar, e o que isto significa para nós, pois afinal, somos pessoas e não apenas estatísticas num relatório, certo? Chegaremos neste assunto em alguns parágrafos.
David Fincher, o diretor, ironicamente já dirigiu comerciais para Budweiser, Nike, Levi’s, Coca-Cola, e outras grandes marcas, mas aqui a sua publicidade toma um caminho diferente, o simples uso de uma marca em Clube da Luta já evoca valores negativos por si, a exemplo disso temos o desprezo pela marca Calvin Klein, o New Beetle (lançado em 1997), e o uso de Starbucks. Como uma forma de traçar um comentário sobre as grandes corporações, Fincher colocou Starbucks em vários momentos no filme como uma brincadeira de “ache a Starbucks”. Agora o que isto diz sobre a empresa? Bem, antes da popularização da Starbucks, era quase impensável para um cidadão comum pagar um preço a mais por um copo de café que não era muito diferente do café da padaria, os consumidores da época associavam o “pagar mais” com “ter um produto melhor”, isso fez a companhia crescer. Hoje, quinze anos depois do lançamento do filme, Starbucks se tornara um padrão aceito na nossa sociedade, tanto que as pessoas estão dispostas a pagar US$ 5 por um café que leva minutos para ser feito, mas não pagam US$ 1 por uma música que custou milhares de dólares para gravar e além de anos de dedicação à arte.**
Comercial da Xelibri – uma marca de celular – dirigido por David Fincher. Você pode conferir na playlist outros comerciais dirigidos por ele.
Comercial da Starbucks. “Não é só café”. Tire suas conclusões.
Quando conhecemos Tyler, seu estilo de vida (“As coisas que você possui acabam possuindo você”) remete à filosofia budista de que o desejo nos leva à infelicidade. Eliminar o desejo leva à satisfação pessoal, à iluminação e à paz interior, ao nirvana. Seus ideais têm um forte apelo a todos nós, pois não queremos ser conformistas, queremos quebrar as barreiras que a sociedade nos impõe, fazer algo de significativo para nossas vidas, este é o apelo da obra, porém, o filme mostra os extremos disto. O Narrador e Tyler são dois extremos em suas categorias, o primeiro é um perfeito consumista, com seu apartamento caro num bairro nobre e o outro vive da sua maneira numa espelunca. Por mais que à primeira vista os ideais de Tyler pareçam mais atraentes, são meros disfarces por trás de uma tirania, e uma lavagem cerebral. Tyler não tem nada de budista como ele se vangloria, suas ações são violentas ao invés de pacifistas, ele prega o caos, vandalismo, e terrorismo, tudo isto tentando impor seu estilo de vida extremista sem se importar com os outros.
Clube da Luta também discute a perda da individualidade e identidade no mundo moderno, isso se manifesta logo quando o protagonista começa a freqüentar grupos de apoio usando nomes falsos. Fazendo isso, ele assume a identidade de alguém com alguma doença. Estes grupos o ajudam a dormir, portantoa ter uma vida melhor, assumir outra identidade ofaz viver melhor; foi dito antes que Clube da Luta fala sobre como nos associamos aos bens pessoais, isto está ligado à perda da identidade, pois o próprio narrador questiona “Que tipo de sala de jantar me define como pessoa?”, ele baseia sua identidade aos seus bens. Antes de continuar esta análise, há uma mensagem importante:
* SPOILER ALERT * – Se você ainda não assistiu Clube da Luta, por favor o faça e após assisti-lo, continue a ler esta análise. As informações que se seguem podem prejudicar a experiência do espectador “virgem”.
Ao final do filme descobrimos que Tyler Durden é na verdade uma manifestação interior do protagonista, ou seja, uma outra personalidade, isso nos diz que ele próprio não se conhece realmente.
A revelação de que Tyler e o narrador são a mesma pessoa deixou muitas pessoas confusas na época do lançamento, o motivo da dupla personalidade era até então pouco visto no cinema, algumas destas manifestações você confere neste post da coluna #5 + 1 – Múltiplas Personalidades. Um roteirista inteligente sabe que para o twist ending fazer efeito, ele precisa plantar pistas durante o filme, algumas destas irão passar despercebidas pelo espectador, mas no final farão sentido, e em Clube da Luta, estas pistas podem passar completamente despercebidas pelo público médio, mas ao montarmos o quebra-cabeça, elas fazem sentido.
Se fosse para citar todas, ficaríamos aqui quase o dia inteiro, por isso optei por citar algumas que poucos notaram: antes de se mudar para a casa de Tyler, o narrador aparece usando cueca estampada e de cor escura, já Tyler usa cuecas brancas, não demora muito para o narrador aparecer usando as mesmas cuecas de Tyler, como se por baixo das roupas íntimas fossem a mesma pessoa; quando Tyler apanha de Lou, o narrador se recurva, como se sentisse a dor do seu amigo, a atenção do espectador neste momento está voltada para Tyler; no grupo de apoio, o narrador se concentra em sua caverna e encontra o animal que lhe dá poder, um pingüim (curiosidade: este pingüim foi desenvolvido pela Blue Sky numa época em que o estúdio apenas desenvolvia computação gráfica para comerciais e filmes, o brasileiro Carlos Saldanha já trabalhava no estúdio nesta época), mais adiante Tyler aparece usando uma camisa com desenhos de pingüins. A habilidade do diretor reside em inserir tais informações sutilmente.
Voltando ao assunto da perda da identidade: quando o protagonista liga para Tyler após seu apartamento ter sido explodido, o narrador se identifica ao telefone da seguinte forma: “Nós nos conhecemos no avião. Nós tínhamos valises idênticas. O cara esperto”, ele não se identifica pelo nome, e por falar nisso, em nenhum momento do filme alguém se dirige ao narrador pelo nome próprio, e o fato de ele dar nomes falsos nos grupos de apoio nos leva a crer que Tyler também não é seu verdadeiro nome, Edward Norton é citado nos créditos finais apenas como “Narrador”, o nome do personagem neste caso se torna irrelevante, pois nem sempre nos lembramos do nome dos personagens de filmes que acabamos de assistir, sabemos apenas que vimos um filme com Johnny Depp, ou Angelina Jolie, por exemplo, (com exceção de personagens icônicos como o próprio Tyler Durden se tornara), esta é mais uma forte evidência que ressalta a perda da identidade em Clube da Luta.
Como uma evolução do Clube da Luta, Tyler e o narrador criam o Projeto Destruição, e uma das regras deste é “não há nomes no Projeto Destruição”, com uma ressalva: “Na morte, um membro do Projeto Destruição tem nome.”; E quanto ao sabonete? Esta peça da higiene pessoal foi bastante usada nos materiais promocionais, o que ela nos diz sobre a perda da identidade? Tyler explica como ele fabrica os sabonetes, seus ingredientes são os mesmos usados na confecção de uma bomba caseira, um dos principais é a gordura humana, roubados do lixo de uma clínica de lipoaspiração, isto é um reflexo do que as pessoas representam para Tyler, apenas restos, seres humanos desconstruídos à sua forma orgânica, sem identidade.
Ao longo de seus 15 anos, Clube da Luta já foi interpretado de diversas formas, uma destas interpretações sugere que os dois personagens são uma versão adulta de Calvin e Haroldo, uma vez que o narrador nunca revela seu nome, ele poderia ser Calvin, que sentiu a necessidade de criar outro amigo imaginário depois de adulto; quando criança, Calvin funda o grupo G.R.O.S.S.O. (em inglês a sigla é G.R.O.S.S., “Get Rid Of Slimy girlS” em português, Garotas Ranhetas nOjentaS Sumam logO) um grupo onde não é permitido mulheres, assim como o Clube da Luta; e tanto o narrador quanto Calvin foram abandonados por seu pai aos seis anos de idade.
Outra forma de interpretar Clube da Luta é como uma história de um homem saindo do armário, um gay enrustido se preferir, que reprimiu durante anos quem ele realmente é, e para se encaixar na sociedade, freqüenta grupos de apoio, e quando não consegue mais esconder sua identidade por causa da presença de Marla Singer, cria Tyler Durden como seu alter ego heterossexual. Sim, há um contexto homossexual neste filme que muitos julgam ser machista. Tyler é a manifestação do que o Narrador gostaria de ser, durante o momento da revelação Tyler diz: “Eu sou como você queria ser, eu transo como você queria transar”, mais claro do que isso seria dizer que não é o Narrador quem faz sexo com Marla, mas sim Tyler, e observe a expressão no rosto do protagonista quando este se recorda do ato sexual, não é uma expressão de prazer, mas sim de dúvida; logo depois que o Narrador conhece Tyler no avião, sua mala é retida porque suspeita-se que tinha um vibrador dentro, esta cena não seria inserida sem um motivo, explorar o tema; a primeira manifestação do Clube da Luta acontece quando Tyler faz uma proposta ao Narrador, uma coisa que ele nunca havia feito antes, depois de “lutarem” estão completamente relaxados. Clube da Luta é um lugar onde homens se reúnem em segredo do restante do mundo, para ter contato físico com outros homens, e por falar nisso, nem quero pensar qual o contexto homossexual das oito regras! Há inúmeras outras pistas que reforçam o relacionamento homoafetivo entre os dois.
Todas estas interpretações são completamente válidas, e este é o poder de uma grande obra de arte, você aceita aquilo que quer. Filmes como este, Onde Vivem Os Monstros e Fonte da Vida, por exemplo, nos levam a uma jornada interior e ao final nos questiona em que acreditamos para desenvolvermos desta forma nosso senso crítico.
Assista ao trailer:
P.S.: Confira também outras matérias relacionadas ao Clube da Luta no Cinemascope:
#5 + 1 REFLEXÕES SOBRE A SOCIEDADE
* A palavra usada pelo crítico americano é “screw”, que num outro contexto pode significar “foder”, ou “enroscar um parafuso”. Embora não concorde com a opinião de Ebert neste caso, eu a respeito imensamente. Você pode conferir a crítica de Roger Ebert no seguinte link (http://www.rogerebert.com/reviews/fight-club-1999).
** Isto faz parte de uma campanha divulgada pelo Facebook, se encaixa perfeitamente neste assunto.
*** Sim, isso foi uma pegadinha, a penúltima imagem é de um episódio de Os Simpsons, o primeiro da primeira temporada, “O Prêmio de Natal” (1989). Aqui o comentário é o mesmo. Bart entra num estúdio de tatuagem no shopping para fazer uma tatoo, ao sair de lá, todas as lojas do shopping foram substituídas por Starbucks, incluindo o próprio estúdio.