Por Lufe Steffen

Brasil, 2021. Em meio a um cenário de neo-conservadorismo geral, incluindo aí as artes e a cultura, como está o cinema brasileiro hoje? E mais: como está hoje o cinema brasileiro que aborda questões LGBTQIA+?

Os últimos vinte anos foram muito importantes para essa temática no cinema nacional. Após o período da retomada do nosso cinema, nos anos 1990, a partir do novo século/novo milênio as coisas foram se intensificando e a produção brasileira passou a querer, cada vez mais, retratar o universo queer.

Mas nos anos 1990 e 2000, na fértil produção de curtas-metragens dedicados à temática, a questão LGBTQIA+ foi retratada, no geral, de forma um tanto limitada – e não apenas no Brasil, mas também no exterior. Talvez tenha sido importante avançar aos poucos nessa temática, e inicialmente mostrar personagens que poderiam ser mais facilmente “aceitos” pelo grande público.

E que personagens eram esses?

Basicamente homens gays dentro de uma faixa etária jovem – dos 20 aos 45 anos. Posteriormente, ampliou-se um pouco essa faixa e entraram os adolescentes – dos 15 aos 20. Um detalhe essencial: tais personagens eram desenhados seguindo certo padrão de beleza externa, física, e não raro com pitadas de sensualidade e erotismo, especialmente nos filmes que ousavam invadir o terreno da vida sexual de seus personagens. Cenas de nudez e sexo desses personagens eram realizadas seguindo o padrão do bom gosto e do “aceitável”.

Outros personagens que aconteciam com frequência nessa fase eram os arquétipos cômicos. Continuavam sendo apresentadas figuras irreverentes, debochadas e sarcásticas: “bichas” tresloucadas e afetadas, travestis ou transexuais espalhafatosas e exageradas.

Personagens que, dependendo da abordagem, acabavam sendo mais um reforço ao preconceito do que um refresco para novos ares. Mesmo porque perpetuavam um tipo de representação tóxica “que já vem malhada antes de eu nascer!” (para citar de novo a música de Cazuza).

Pode-se dizer que esse panorama foi um reflexo do machismo brasileiro, produzindo tal resultado: homens gays jovens, belos e sexualizados e figuras escrachadas e afeminadas eram permitidos, pois não ameaçavam a “moral” de ninguém. Curiosamente, esses personagens, porém, foram uma espécie de Cavalo de Tróia: abriram as portas e puxaram um desfile de personagens LGBTQIA+ ecléticos e diversos, que hoje se espalham pelo cinema brasileiro de forma irreversível – ainda bem!

Assim, nos últimos dez anos, a produção de longas nacionais LGBTQIA+ (de ficção ou de documentário) foi se ramificando e buscando protagonistas originais e que escapam do padrão hegemônico nacional – inclusive saindo do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. E surgiram filmes como Sócrates, (2018, de Alexandre Moratto ), situado em Santos, que traz como protagonista um jovem negro e periférico que enfrenta o desamparo após a morte da mãe, enquanto tenta viver sua homossexualidade; Tinta Bruta (2018, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon), de Porto Alegre, sobre um adolescente branco e atormentado que ganha dinheiro protagonizando vídeos eróticos na internet e que se envolve com um bailarino negro; Tatuagem (2013, de Hilton Lacerda), de Recife, romanceando a história do grupo performático teatral Vivencial Diversiones (no filme, a trupe foi rebatizada como Chão de Estrelas) na capital pernambucana do final dos anos 1970.

No terreno dos documentários, tivemos momentos importantes com filmes que fazem um resgate histórico da cultura gay nacional: Dzi Croquettes (2009, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez), sobre o lendário grupo performático carioca; Meu Amigo Claudia (2009, de Dácio Pinheiro), retratando a inesquecível travesti Claudia Wonder, atriz, cantora, escritora, militante; São Paulo em Hi-Fi (2016, de Lufe Steffen), focalizando a noite gay paulistana nas décadas de 1960, 70 e 80. Lampião da Esquina (2016, de Lívia Perez), narrando a saga do primeiro jornal gay brasileiro – em todos esses casos, os depoimentos de veteranos LGBTs do Brasil fizeram com que as gerações mais velhas sejam representadas na tela, ampliando assim a faixa etária com que a temática surge em nosso cinema.

Artistas da música brasileira que vivem ou viveram suas sexualidades de forma aberta e explosiva também ganharam documentários, como Ney Matogrosso, Linn da Quebrada, Marina Lima e Cássia Eller – em “Cássia Eller” (2014, de Paulo Henrique Fontenelle) a cantora é homenageada com toda a fúria que a caracterizou.

Isso sem esquecer os mais recentes documentários que celebram figuras da atual militância queer no Brasil, caso de Indianara (2019, de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa), sobre a ativista trans paranaense Indianara Siqueira.

Diante disso, percebemos que a representatividade LGBTQIA+ no nosso cinema está cada vez mais variada. Mas ainda restam alguns tabus, ou pelo menos um: infância LGBTQIA+..

O cinema internacional já ousou tocar nesse tema sempre tão delicado (com destaque para países europeus). Na Dinamarca, já em 1978 o assunto surgia no belo e poético Du Er Ikke Alene (You Are Not Alone nos EUA; no Brasil o filme nunca foi lançado oficialmente). Ali, o sensível romance entre dois garotos (de 12 e 14 anos) é mostrado de forma até hoje difícil de superar, tal é o brilho dos realizadores Ernst Johansen e Lasse Nielsen.

Nos anos 1990, a França veio com Minha Vida em Cor de Rosa (Ma Vie en Rose, 1997, de Alain Berliner), que marcou época. Ludovic é aparentemente um menino que insiste em se vestir de menina e agir como uma, escandalizando a família e a escola. Hoje, podemos dizer claramente que Ludovic é uma menina trans.

Alguns anos depois, a mesma França trouxe Tomboy (2011, de Céline Sciamma), desta vez sobre um menino trans. Laure é aparentemente uma menina que, ao se mudar para uma nova comunidade, decide fingir ser um menino – e tudo que acontece a partir dali vai mostrar que de fato estamos diante de um garoto trans.

Na Argentina, o diretor Papu Carotto realizou em 2015 o curta Matías e Jerónimo, sobre dois garotos de 10 anos cuja amizade é intensa a ponto de incluir a paixão e o desejo – mas um fato vem abalar a questão, trazendo o medo de viver a sexualidade.

O curta foi um ensaio para o longa-metragem Esteros (2016, uma coprodução Argentina-Brasil-França, olha a França aí de novo!), onde Papu traz novamente Matías e Jerónimo, desta vez retratados em duas épocas: na infância, nos anos 1990, quando a paixão entre eles se realiza, estremecendo a amizade dos dois; e na fase adulta, na atualidade, quando eles se reencontram. Esteros, assim como o pioneiro dinamarquês You Are Not Alone, mostra o romance infantil de forma poética e pungente.

Mas e o Brasil?

Algumas tentativas foram feitas, principalmente no universo dos curta-metragens. Quanto à produção de longas comerciais, é importante ressaltar Minha Mãe é uma Peça 3 (2019, de Susana Garcia), que mostra o filho de Dona Hermínia, na infância, se fantasiando de Emília (a boneca do “Sítio do Picapau Amarelo”) para um evento na escola – enfrentando o bullying e o preconceito, e sendo defendido por sua super-mãe.

De forma mais metafórica, podemos citar As Boas Maneiras (2017, de Juliana Rojas e Marco Dutra). Se a primeira parte do filme mostra um romance entre a grávida Ana e sua empregada/futura babá do bebê Clara, a segunda parte narra o drama da criança – agora o menino Joel, de cerca de 9 anos, que tem um segredo: ele é um lobisomem juvenil.

A questão do lobisomem, o pequeno monstro, relaciona-se diretamente com as raízes do cinema de horror mundial – onde sempre existiu essa associação entre os monstros com elementos discriminados da sociedade: LGBTs inclusive, claro.

Em As Boas Maneiras a monstruosidade do pequeno Joel e a forma como a sociedade reage ao descobrir o caso podem ser lidas como uma representação do “ser diferente”. Diferente do padrão sexual e de gênero que é, ainda hoje, o padrão “aceito”.

Pois é, ainda temos um longo caminho a percorrer. Vem aí outros filmes brasileiros que mergulham no tema: o curta-metragem documentário O Amigo do Meu Tio, o longa-metragem de ficção Nós Somos o Amanhã, entre outros, prometem avançar ainda mais.

Vamos aguardar essas novas façanhas do cinema brasilero LGBTQIA+, que vai precisar ser cada vez mais ousado. Que assim seja.

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Sobre o Autor

Lufe Steffen é cineasta, jornalista e pesquisador, dirigiu os longas “São Paulo em Hi-Fi” e “A Volta da Pauliceia Desvairada”, além da série “Cinema Diversidade”

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