Depois de 90 dias, está difícil assistir ao Big Brother Brasil. No entanto, ainda estou aqui: como uma criança que não sente o céu da boca depois de tanto açucar mas continua pedindo algodão doce, eu ainda estou aqui assistindo Big Brother. O estado é propício para uma escrita desregrada sobre o programa. Desculpem o excesso de palavras a seguir, mas durante as longas descrições houve uma amenização do mal estar da pandemia. Se o texto foi publicado, é porque há a esperança de que você se sinta menos mal lendo algo durante a pandemia.
O “durante a pandemia”, vale destacar, não é somente uma contextualização, mas uma condição que afeta e transforma a maneira como eu assisto qualquer coisa atualmente. O Big Brother casou com o novo “estado de espírito”, pois ele não é um filme que posso assistir na TV ou no notebook, ou uma série que consigo maratonar em um final de semana. O Reality Show é um produto absurdamente diferente, que pode ser visto na TV (aberta ou nas câmeras 24 horas) ou pela internet. Quanto mais eu me entreguei ao programa, mais essas duas formas me impactaram de maneiras diferentes, como comentarei a seguir.
Assistindo pelas câmeras
Meu HD é cheio de filmes que ainda não assisti. Compro livros, mas não finalizo as leituras antigas. Os roteiros das minhas próximas aulas estão prontos, mas os projetos para alguns editais ainda não foram revisados. Mas estou na cama, “produzido”, pelo menos mais do que o normal, olhando há horas uma festa do Big Brother. Eu sorrio sem parar enquanto o Gil do Vigor conduz uma espécie de dança aeróbica ao som do Rouge.
Já encenei a cena acima algumas vezes. Não assistia um filme/série por falta de concentração, e me demorava sobre o BBB pois era a única coisa que me tirava da apatia. Alienação, alguns diriam, mas a falta de interesse pelas coisas “importantes” já se desenvolve desde o começo da pandemia, ou seja, antes do programa começar, e provavelmente vai durar depois que ele terminar.
Nas câmeras 24 horas do programa, as festas, os encontros e os abraços que sumiram (para os sensatos) desde março do ano passado, estão acontecendo, em tempo real, na nossa frente. Ao me demorar algum tempo sobre essas câmeras, a raiva contra a pandemia e o presidente para de me envenenar. Eu sinto raiva ou carinho por coisas banais mas que agora estão raras: um xingamento grosseiro, uma dança maluca no meio da pista, um beijo, um beijo triplo, um beijo quádruplo, um abraço.
O meu olhar ainda é controlado, pois mesmo na câmera 24 horas há alguém me permitindo ver algo e me proibindo de ver outra coisa. Contudo, mesmo assim, eu assisto uma festa real que acontece no exato momento em que eu estou em isolamento social. Não é mais uma questão de realidades distantes, mas de possibilidades distintas, pois ali os participantes estão fazendo coisas que eu simplesmente não posso fazer agora. Esse choque cria algo em mim que vai além do bem e do mal, talvez um gatilho, talvez uma forma melhor de engolir um cotidiano amargo.
Nesse processo, os indivíduos na câmera são essenciais. Ainda que alguém escolha qual imagem eu deva assistir, a minha percepção não é guiada de maneira tão profunda quanto no programa da televisão aberta. Nas câmeras 24 horas, não há trilha sonora emocionante, triste ou empolgante, há somente indivíduos e as suas escolhas, ainda que as suas escolhas sejam emolduradas a partir de dinâmicas de jogo.
Não é a realidade, é óbvio, mas são corpos reais reagindo à estrutura do jogo, como já comentou Thais Lourenço. Mas me interessa como, no pay-per-view, as câmeras geralmente ficam distantes, valorizando a relação entre corpo e espaço em planos ligeiramente mais abertos. Não há tempo para uma edição frenética com as câmeras em close – recursos que enfatizam a nossa conexão e controlam as nossas emoções. Por isso assisti mais o programa pelas câmeras 24 horas, já que consegui, nesse modo, identificar mais nuances nos personagens.
Falo personagens, mas, é claro, os participantes não estão em um romance, um filme ou uma série, porém eles são personagens de um Reality Show, se desenvolvendo em um formato distinto (e que também necessita de profissionais específicos, como a roteirista Patricia Oriolo já comentou em um bate-papo no canal do Cinemascope). Dentro dessas construções, muitos espectadores se relacionam com os “personagens” a partir de categorias clássicas, como vilão, herói, anti-herói, protagonistas e coadjuvantes, algo incentivado por várias dinâmicas do próprio jogo. No entanto, é preciso pensar que a “classificação” de determinados tipos também reflete questões sociais.
Se Viih Tube foi a última vilã no programa devido a comportamentos falsos, é preciso destacar que Caio foi um personagem muito mais falso, cruel e grosseiro do que a Viih: a perseguição contra a Juliette se alastrou a partir de informações deturpadas que o Caio espalhou a todos. Mas esse lado do seu personagem foi esquecido aqui fora. É claro que ele “movia” o entretenimento, e isso era importante para o programa, mas esquecer as suas falsidades enquanto a Viih Tube é estigmatizada como uma pessoa horrível, diz muito sobre uma perspectiva machista.
Inclusive, o discurso de eliminação do Caio foi completamente sem sentido pois o apresentador Thiago Leifert sugeriu que o participante saiu porque pedia pra sair. Ora, o público já havia se esquecido completamente desses “dramas”, e os tratava como piada. Ninguém ligava para isso. Ele perdeu o carisma (e um possível favoritismo) porque foi alguém que machucou muito as pessoas, levantando a voz para mulheres (Juliette e Carla) ou pessoas que estavam ameaçadas (Gil), além de fazer o famoso “leva e traz”. Era esse jogo duplo que o personagem Thiago “apresentador gente como a gente” deveria tentar sugerir como motivo de eliminação, ainda que de maneira leve. Mas não, a sugestão da manipulação foi deixada para a Viih.
É claro que o discurso do Thiago não é um discurso isento feito por somente por um apresentador que fala com os participantes de seu programa. Ele não comenta somente o mundo lá de dentro, mas reflete as pressões de fora, seja da própria emissora ou da torcida. E, dependendo da semana, o público muitas vezes coloca uma pressão absurda para que determinado participante seja a incorporação de um papel específico.
A aplicação de categorias ficcionais tradicionais em personagens de uma ficção não tradicional pode funcionar para alguns participantes. A trajetória de Juliette, por exemplo, é linear e tem atos bem definidos. O seu favoritismo se justifica pois ela foi a que mais sofreu ataques durante boa parte do programa, e ataques, basicamente, devido a sua personalidade. Ainda assim, Juliette nunca foi agressiva, no máximo “insistente” ou “cansativa”. Nos jogos da discórdia, muitas vezes ela era uma das últimas a escolher quais seriam seus elogiados ou aliados. Nesses momentos, os participantes e as dinâmicas agiam para a construção da dramaturgia heróica de Juliette, pois as exclusões, chacotas e críticas dos colegas serviam como provações gradativas que ela deveria enfrentar e superar, o que ela fez. As próprias pessoas que não gostavam dela a levaram para esse protagonismo.
Para essa construção funcionar no programa, era importante Juliette perceber que não era prioridade de ninguém. Logo, nos jogos da discórdia ela era uma das últimas, justamente para observar todos a deixando em segundo plano. O programa, ao enfatizar o isolamento, corrobora que a exclusão é essencial para a personagem Juliette, pois quanto mais ela sofria lá dentro, mais ganhava destaque. Para chegar ao prêmio, ou continuar favorita, ela precisava passar por essas dificuldades e não sucumbir. É uma construção simples, que reside principalmente na força de Juliette e na maneira como ela permaneceu fiel à si mesma. O Dantas, que cobre o BBB no Twitter, resumiu bem a questão: “Juliette me transbordou sentimentos. A jornada dela lá dentro não foi fácil. Imagina o que é ser rejeitada, deixada de lado e subestimada assim que vc pisa no programa de maior audiência do país? O que me cativa na trajetória de Juliette é a RESILIÊNCIA”.
Houve as grandes discussões em que os atritos foram claros, mas nas câmeras 24 horas é possível ver uma exclusão mais cotidiana, e que me dói mais até. Me lembro de um dia em que seis pessoas estavam na mesa da cozinha conversando sobre afazeres domésticos, e Juliette começou a falar sobre organização das louças ou algo assim: ela tentava falar algo banal para as pessoas, mas todas os cinco na sua frente simplesmente fingiam que ela não estava ali e conversavam entre si, ainda que ela continuasse e continuasse. Assistindo esse cotidiano, dá pra entender que ser tão centrada em si pode ser uma forma de defesa quando ninguém se importa muito com você.
O jogo (interno e externo) com a exclusão me incomoda, pois ainda que fosse cansativa a maneira como Juliette falava de si mesma, nada justificava a acidez dos participantes com ela, inclusive dos seus próprios aliados. Qual é o problema dela ser viciada em D.Rs? O que Juliette fez para a Sarah (antiga grande aliada) falar que não se importava mais com a participante? Nada justificava a rigidez. Era puro ranço, algo injusto. Consequentemente, se compadecer com a Juliette é algo humano. O fato dela não responder com raiva a raiva que recebia aumentou o seu protagonismo com contornos heróicos. A intensificação da perseguição intensificou a empatia de muitos aqui fora. No entanto, outros personagens não são tão lineares.
O Fiuk, por exemplo, no começo foi o cozinheiro resmungão que queria aplicar os verbetes de desconstrução que acabara de aprender, quase um personagem cômico, e depois se tornou um vilão ou anti-herói devido às grosserias com Juliette e outros. Ele chegou a reclamar que a advogada parou de dar carinho para ele quando os dois entraram na casa principal do programa. No entanto, ao amenizar esse lado, ele virou um outro personagem, um Robin menor para o Gil. Ainda que seja possível identificar os elementos dos três personagens em toda sua trajetória, ele incorporou mais firmemente cada um em etapas distintas do programa. Personagens que não tem conexão, com alguns despertando indignação no público.
Gil do Vigor é um outro caso: se foi um herói, foi um herói trágico, pois pecou sem perder a inocência; ele foi um Otelo que encontrou em Sarah, Caio, Karol, Lumena e em si mesmo as incorporações de Iago, o personagem shakespeariano que atiçava a falha trágica do mouro de Veneza (o ciúme), sendo que no caso de Gil a falha trágica é o deslumbramento, mas ele mereceu um outro texto. De qualquer forma é interessante pensar em outras categorias para avaliar como no BBB os personagens podem nascer e morrer no mesmo corpo em poucos dias.
Ainda que nos emocionemos com um Reality Show de maneira paralela com a que nos emocionamos com outras ficções audiovisuais, o programa cria afetos com características específicas. Mas, além do calor do programa, o BBB também possibilita outro tipo de afeto distante.
Assistindo pela internet
Vamos falar de redes sociais. Estamos em uma pandemia, e, consequentemente, para as pessoas sensatas, os contatos físicos com os amigos diminuíram drasticamente. Ao mesmo tempo em que o Big Brother ganhava destaque, mais a pandemia entrava no caminho da catástrofe (do qual ainda não saímos). Perdemos muito, inclusive o cotidiano de nossas amizades. Uma perda triste, pois, para uma amizade, existe algo mais importante do que o cotidiano?
É preciso uma adaptação radical e inumana para sentirmos à distância o calor do afeto de alguém que aprendemos a amar “presencialmente” e não por lives. A rede que se cria em volta do Big Brother talvez seja essa possibilidade de criar um “afeto” onde a distância não é um problema, já que ele nasce no mundo online. É um afeto de uma ponta só, mas que controlamos a partir de nossas playlists no YouTube ou de quem escolhemos seguir nas redes sociais. O sentimento é simples mas especial pois nos faz sorrir em uma época em que é difícil sorrir. Ganhamos novas alegrias e tristezas cotidianas.
Se antes eu me chateava por não encontrar a amiga “N” no cinema, hoje eu fico com raiva do Chico Barney quando ele não realiza uma live durante a semana. Se antes eu, que sou manauara, achava estranho as pessoas falarem “manauenses”, hoje eu me transtorno com o Marcelo Adnet pedindo desculpas à nação “barneana” (errado) e não “barneyra” (o correto). Sem cabeça até para rever minhas comédias românticas favoritas, as falas apaixonadas de Meg Ryan perderam espaço para os comentários de Ciro Hamen sobre o Gil do Vigor e o “seu sorriso, o seu maldito sorriso”. As reuniões dos grupos de pesquisa não acontecem, mas toda semana tenho os podcasts da Uol, que permanecem acolhedores, inclusive quando a internet do Stycer não funciona. Philo é a figura paralela do professor que cativa pois não perdeu o calor no voz ao comentar o assunto que conhece há anos. As piadas cotidianas não são mais sobre o nosso cotidiano (me lembro sempre de “passar mal” com Bheatrix sugerindo fazer um Reality Show da Vih Tube em busca de um pai, uma versão do “Papito in Love” – aquele dia foi louco). Essa rede do BBB não é “íntima”, pois “está” e “é” distante, mas ela é mais minha vizinha do que meus próprios vizinhos (Denilson Lopes, 2002).
Isto me ajuda nos dias de hoje, pois quando sinto que pessoas distantes estão próximas do meu interior, eu também sinto que a pandemia não me controla totalmente. A duração dessa liberdade pode durar a leitura de um post no Twitter, mas durante esses poucos segundos a minha alma não fica mais em luto pelo passado recente que foi embora e ainda não voltou. Viva aos memes.
As amizades tradicionais seguem “firmes”, mas também foram remodeladas. Eu e as amigas “J”, “N” e “K” comentamos Big Brother em um grupo no WhatsApp. Os diferentes títulos do grupo praticamente narram a escalada de sentimentos do programa. A “J” é a mais empolgada. Unidos, somos como Dom Quixote e Sancho Pança. Na verdade somos Dom Quixote e Dom Quixote debatendo as cachorrradas do Gil, o comportamento passivo agressivo de Fiuk, as homofobias contra o Gil, as grosserias do Caio, o discurso machista do Rodolfo ao votar na Carla etc etc.
…
A pandemia transformou a maneira como nos relacionamos com o tempo no dia a dia. De repente, nos percebemos finitos, impotentes ou vazios. No nosso caso, os sentimentos surgem diante de uma perda de hábitos e durante um isolamento necessário que nos impossibilita de tentar superar o luto fora de nossas casas. Isto, é claro, aumenta a dor, ou a apatia, ou a falta de concentração, e aí tudo se transforma.
Elizabeth Bishop escreveu que “a arte de perder não é nenhum mistério”, mas hoje nós somos obrigados a encarar o mistério de perder algo toda hora. No dia 1° de maio o comediante Paulinho Serra postou: “Eu tenho medo de morrer de covid”.
Ao ficar meses sem conseguir fazer muita coisa (um estado mais sombrio que o ócio criativo), perdemos as datas e a sensação de que conseguimos realizar alguma coisa, ainda que essa coisa seja extremamente banal. Assim, o calendário passa mas ficamos presos em um estado estranho enquanto o nosso corpo e a sociedade definham. O Big Brother não resgata o tempo perdido desde o começo da pandemia, mas possibilita vivermos o presente sem a sensação de esgotamento e derrota. Assim, com o programa, 2021 não será somente o segundo ano da pandemia, mas também o ano em que eu vi o Big Brother 21, o ano do Gil.
Não se trata de esquecer os problemas, pois o próprio programa traz questões problemáticas, mas com o BBB eu consigo sentir algo que não seja desesperança, pois para o resto, para a sociedade, para o presidente, a escuridão chega a transbordar. Mas ano que vem eu não morro.
…
Acho que me rasguei muito nesse texto. É porque o Big Brother acaba em dois dias e eu já estou com saudades de dançar com o Gil.
*Texto escrito ao som de “Praying for Time”, de George Michael, mas a revisão foi silenciosa.
**Texto escrito no dia 1° de maio
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