Em nossa segunda coluna Requadro vamos comentar duas obras influenciadas pelo mais oriental dos cineastas, Yasujiro Ozu. Este é um dos principais nomes do cinema clássico japonês, ao lado de Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa. O seu cinema maduro é marcado por um tempo mais dilatado em dramas familiares que não exploram os excessos de conflitos e intrigas.  Os personagens de Ozu enfrentam seus obstáculos de forma ponderada, principalmente em relação às figuras mais velhas.

Aspectos como solidão, abandono e separação são desenvolvidos como elementos inerentes e quase naturais da vida, não havendo a necessidade de desespero. Tal serenidade ganha forma na própria imagem fílmica, com planos posicionados mais próximos do chão e não na altura do olhar, uma encenação lenta e harmoniosa, e a inserção de diálogos e imagens que não movem necessariamente a trama da narrativa, mas que dizem muito sobre uma condição subjetiva. Como notou Felipe Gofferman aqui no Cinemascope Yasujiro Ozu “é, na verdade, o que mais conseguiu se aproximar de reproduzir em tela o ser humano em toda sua complexidade e individualidade.”

Nesta coluna, a principal influência se dá principalmente na forma. As duas obras comentadas serão: O homem que passeia, de Jiro Tanigushi, e Café Lumière, de Hou Hsiao-Hsen. Digo que o foco dessa coluna é a forma pois ambos os autores trabalham com esse tempo dilatado de Ozu, mas sem necessariamente desenvolver uma grande narrativa sólida, ainda que ela exista. A relação entre narrativa e silêncio se dá de forma muito harmoniosa em

 

 

 

Yasujiro Ozu, não prevalecendo uma sobre a outra. Já nas obras seguintes, iremos perceber a predominância do silêncio em detrimento de uma narrativa – o que já demonstra sofisticados experimentos.

O quadrinho: O homem que passeia, de Jiro Taniguchi

Em 2017, a editora Devir publicou o mangá O homem que passeia, de Jiro Taniguchi, mangaká ainda não tão conhecido por aqui.  Apenas no últimos anos ele passou a ser publicado no Brasil, apesar de seu sucesso no exterior, principalmente na Europa. O título da obra revela o encaminhamento da trama, já que ela apresenta principalmente os passeios de um homem. Ele tem uma casa e uma mulher, que não sabemos o nome. O mangá é dividido em cinco partes, mas a primeira – focada nos passeios – ocupa pouco mais de 180 páginas, enquanto as outras têm entre 5 e 16.

Esqueça as referências de mangá que ficaram famosas no Ocidente, ao estilo de Naruto ou Cavaleiros do Zodíaco. O traço carregado e cheio de distorção que é característico nessas aventuras de ritmo veloz, perde espaço para um traço de clareza absoluta, quase nunca confundindo o espectador. O desafio se dá em como tornar visualmente interessante o cotidiano banal de um homem. Nesse sentido, se percebe a busca por uma beleza do dia a dia, retratando momentos de intenso lirismo que aparentemente passam despercebidos.

Além do conteúdo, a própria quadrinização possui uma riqueza sofisticada. As angulações podem variar bastante dentro de uma mesma página apresentando desde planos abertos, que mostram os corpos inteiros do personagem dentro de um espaço identificável – como um parque –, até planos detalhes focados em membros específicos. Tudo parece tão simples mas, ao prestarmos atenção nas mudanças de angulações, fica evidente a variedade estilística de Jiro Tanigushi. E em todos esses diferentes quadros, a relação entre o homem e o espaço ganha nuances vivas.

Os detalhes das mãos, pés e rosto do protagonista demonstram uma espécie de aspereza entre esse corpo e a natureza. Essa característica às vezes transmite uma sensação de esforço – como quando ele sobe em uma árvore – ou alívio – como quando molha a cabeça debaixo de uma torneira –, mas nunca de forte atrito. Essa rusticidade faz parte de uma relação harmoniosa com a natureza. Tal harmonia é apresentada visualmente nos quadros abertos e distantes em que o homem está praticamente diluído no espaço em volta. Alguns desses quadros ganham uma página inteira; neles, a natureza, a cidade e até um quintal ou uma piscina demonstram a insignificância do homem no mundo. Mas isso não traz agonia ao protagonista, mas sim uma espécie de felicidade sem motivo, que transparece nos sutis sorrisos presentes em vários quadros.

As últimas quatro partes são curtas e com enredo mais delineado, sendo um pouco chocante para o leitor, pois nas 180 páginas anteriores o elemento narrativo era, aparentemente, mais ameno. Talvez não nos níveis padrões, inclusive para Yasujiro Ozu, que dirigia dramas com tramas sólidas, mas em um nível mais cotidiano.

Vale ressaltar que durante grande parte dos nossos dias não estamos vivendo intensos tramas marcados por linearidades e um clímax. Isso ocorre em parte da ficção de grande alcance. Nos entregamos para essas obras narrativas justamente pois elas eliminam a parte tediosa ou espaçosa de nossas vidas. O grande mérito de O homem que passeia é mostrar como esses tempos mortos podem ser interessantes.

Há construção e há narrativa na obra, mas esses elementos não buscam espetacularizar ou responder mistérios. Porém, transformam elementos banais em elementos poéticos ou intrigantes, que existem somente no momento daquele quadro, mas que não deixam de ter uma força ou beleza, apesar da finitude.

Cito alguns: o velho que pesca peixes em um córrego que não tem peixes ( e ele sabe disso); a corrida, sem sentido, que o protagonista começa a ter com um velhinho que caminha a seu lado; o momento em que o homem se deita sob  uma cerejeira e uma mulher aparece, falando que, quando pequena, se deitava naquele local, mas que depois se mudou para bem longe daquela árvore; e vários outros.

Os capítulos da primeira parte narram pequenos grandes momentos bem claros. Ainda que não saibamos informações burocráticas sobre o personagem – seu emprego, idade ou nome por exemplo –, no final ficamos com uma sensação que o conhecemos muito, mesmo com tão pouco. Ele surge como um indivíduo sem medo de se jogar nos pequenos mistérios apresentados pela vida  a toda hora, mas para os quais nos tornamos praticamente cegos. Não que ele seja um rebelde excêntrico. Ao contrário, seus cabelos e feições demonstram alguém introspectivo e calmo, mas que não exclui essa sede de aventura.

Em Nascer do Sol, por exemplo, ele chega em casa à noite, cansado – provavelmente depois do trabalho, já que está com um paletó – mas esqueceu a chave. Passeando pela cidade sozinho, avista um prédio vazio e simplesmente começa a correr nas suas escadas até o térreo, onde dorme até o nascer do sol.

Os quadros em que ele corre demonstram uma espécie de obsessão pela falta de obsessão, em que o desligamento – não radical – do personagem transmite um “delicado sentimento de passagem do tempo, de nascimentos e mortes, e tantas outras pequenas perdas e transformações de que uma existência é feita”, utilizando uma reflexão de Denilsoln Lopes sobre Yasujiro Ozu e que se aplica perfeitamente a obra de Jiro.

O filme: Café Lumière, de Hou Hsiao-Hsen

Em nossa proposta de analisar obras influenciadas por Ozu, o filme Café Lumière (2003), do diretor Hou Hsiao-Hsen, pode parecer uma escolha óbvia, já que a obra foi concebida como uma homenagem ao cineasta japonês, se inspirando no clássico Era uma vez em Tóquio (1953). No entanto, o filme não se trata de uma atualização ou remake tradicional. Apesar de algumas referências diretas, as duas obras são bem distintas, com mais pontos de distância do que de contatos.

Mesmo assim, a inspiração em Yasujiro Ozu ainda é viva, principalmente na forma como pequenos momentos são compartilhados, a partir de uma proposta de Hou Hsiao-Hsen, também cineasta do tempo. Conforme pontuou Ruy Gardnier, a obra, assim como Five, a homenagem de Kiarostami a Ozu, apresenta “uma profunda inspiração, de uma serenidade de observação que pertencem profundamente à monumental contribuição de Ozu ao cinema”.

A narrativa em Café Lumière é muito mais diluída em comparação a Yasujiro Ozu. Vamos acompanhando o que acontece em tela a partir de Yoko Inoue, uma jovem mulher grávida que está pesquisando o compositor e pianista taiwanês Jiang Wen-Ye (1919-1983). O café que ela procura era frequentado por Jiang. O espectador aos poucos vai criando a linha de acontecimentos, mas o filme não quer induzir essa organização. No momento em que uma informação “de trama” é revelada, a câmera ainda fica longos minutos no mesmo espaço, acompanhando o cotidiano das pessoas. O filme é repleto desses registros simples do dia a dia, no qual, quase como por um acaso, surge uma informação da trama .

Assim, é interessante notar como o objetivo de alguns cineastas clássicos, como Jean Renoir, Jacques Becker e o próprio Ozu – que buscavam criar um clima de espontaneidade dando a sensação de que a câmera estava por acaso no local do registro – em Café Lumière é levado ao extremo, mas um extremo simples.

O espectador deve se esforçar para buscar uma contextualização entre o mundo em tela e o percurso da protagonista – ainda que tal percurso seja muito frágil. No entanto, é a partir de tal fraqueza que o filme ganha força, pois essa fragmentação demonstra bem a visão de Hou Hsiao-Hsen sobre a sociedade contemporânea, permeada pelos silêncios ruidosos das cidades, sem que isso necessariamente ganhe contornos radicais.

O café frequentado por  Jiang, por exemplo, foi transformado em um prédio moderno. Ao encontrá-lo, Yoko simplesmente tira uma foto com uma câmera portátil. Assim, citando Lila Foster, fica nítido como Hou Hsiao-hsien é um cineasta da memória: “não a memória imiscuída com uma certa fantasmagoria e assombro de Alain Resnais, mas uma memória calcada na lembrança de momentos já vividos, na beleza dos souvenirs, nas narrativas sobre o passado e na percepção de como a experiência – do amor, da vida nas cidades, da vida familiar — vai se transformando”.

A relação física de Yoko com o mundo em sua volta se torna visualmente significante. A revelação para os pais e um amigo de que está grávida é feita como se fosse algo casual. Depois, ela se move sozinha e grávida pelo mundo urbano, mas com um ar autônomo. Ainda assim, essa sensação não é transmitida por meio de um empoderamento conflitante. Pelo contrário. Yoko simplesmente parece não ter obstáculos. Ela vive os seus dias, realizando algumas tarefas para suas pesquisas e visitando amigos e familiares – o que todos nós fazemos.

Ainda que o filme apresente alguns elementos narrativos, o pacto que ele cria com o espectador não é entre a personagem principal e o público – o que ocorre nos filmes tradicionais e, em parte, no cinema de Ozu. Acredito que filme incita mais um pacto entre público e o mundo em volta de Yoko. É preciso emergir nessa atmosfera cotidiana e seguir um ritmo característico, sendo que esse cotidiano não apresenta uma sofisticação na imagem ou nos diálogos.

Você não encontrará aqui o lirismo urbano que há em filmes como Paterson, de Jim Jarmush, ou Crônicas de uma Certa Nova Iorque, de Stanley Tucci, e até no quadrinho que acabei de comentar, pois estas obras constroem momentos poéticos e belos em suas representações do dia a dia. Já em Café Lumière, a câmera distante e os planos longos, estáticos ou em movimento, registram os momentos de forma direta: as casas não são tão arrumadas, uma cena noturna não é tão bem iluminada, e os transeuntes urbanos são reais. A empatia que o público deve criar não é com a beleza construída da cidade ou do cotidiano, mas justamente com o seu retrato mais cru e autêntico – marcando uma outra distância em relação a Yasujiro Ozu.

Isto não significa que a banalidade dos nossos dias é isenta de uma certa beleza, ainda que ordinária. Digo isso pois apesar de Café Lumière não glamourizar a imagem, ele também não entrega uma vida completamente nua. Alguns planos distantes demonstram um trabalho de composição de cena e até de certa coreografia.

Na segunda visita dos pais de Yoko, por exemplo, ela e seu pai ficam sentados comendo um prato que sua mãe deixou na mesa. Ela passa a comer enquanto conversa com a mãe. O pai se levanta e se senta em uma poltrona atrás. Depois que sua mãe coloca o prato de volta, ele volta para a mesa. O corpo e semblante rígidos de seu pai sentado em silêncio demonstram uma certa tensão ou falta de entendimento do homem com aquela situação, já que Yoko não vai se casar com o pai de seu filho. Não há extremos, mas existe uma certa tensão nesse momento, ainda que ela não se reproduza, em nenhum grau, em Yoko ou na mãe, que conversam naturalmente.

Mas há também planos menos organizados no filme, o que não exclui a beleza (crua) da cena. E nesses momentos mais orgânicos, a relação do corpo de Yoko e o espaço em volta é primordial para transmitir uma possível sensação: ela se deitando no chão da sala da casas de seus pais pode demonstrar o afeto que ainda tem por aquele mundo, e também o cansaço que sente em seu próprio; inclusive, esse cansaço é demonstrado em vários momentos como quando Yoko dorme em um banco de metrô ou senta no chão de uma estação – fazendo um ótimo deslocamento da posição clássica de Yasujiro Ozu.

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