Hollywood não é nada sem uma boa polêmica.

Desde os primórdios com filmes como Nascimento de Uma Nação (1915) de D.W. Griffith ou Bonequinha de Luxo (1961) de Blake Edwards, até obras mais recentes como Sob O Mesmo Céu (2015) de Cameron Crowe e Peter Pan (2015) de Joe Wright; Hollywood escancara um dos seus maiores problemas: a representatividade.

Muito se fala sobre o papel do negro no cinema, e esse é um assunto que deve sim ser debatido cada vez mais sobre como essa representatividade se dá nas telas além dos estereótipos com os quais já temos que lidar no nosso cotidiano. 

Mas não são só os negros que são relegados a um segundo plano ou completamente apagados das histórias, como Em Rota de Colisão (2007) onde a história real de uma mulher negra chamada Chante Jawan Mallard se transformou em Brandi Boski e foi interpretada por Mina Suvari. Já em Bonequinha de Luxo o ator estadunidense Mickey Rooney interpreta o Sr. Yunioshi, teoricamente um japonês, de maneira completamente caricata e desnecessária (não só para a história do filme, como no geral).

Mickey Rooney como Sr. Yunioshi em Bonequinha de Luxo

O quê é whitewashing?

Esse não é um termo novo dentro do meio artístico como um todo, mas principalmente no cinema ele aparece com uma frequência assustadora uma vez que os grandes estúdios insistem em colocar pessoas brancas em papéis, sejam eles históricos ou adaptações de outros meios, que são destinados a outras etnias. 

Em 2015 existiram dois filmes que se destacaram no quesito whitewashing: Sob O Mesmo Céu e Peter Pan

Cameron Crowe escalou a atriz Emma Stone para interpretar Allison Ng, a personagem era uma piloto da força aérea com descendência havaiana e chinesa; Stone nasceu no Arizona e não tem nenhuma descendência havaiana ou chinesa. Na época, a atriz e o diretor receberam críticas sobre a escolha de chamar uma atriz caucasiana para o papel – uma vez que a identidade da personagem era parte fundamental nada mais justo do que buscar uma atriz com esses traços para tal – e, eventualmente, Emma Stone se desculpou por ter ter aceitado fazer o filme.

Emma Stone em Sob O Mesmo Céu

Com Peter Pan, a ideia era trazer a origem do personagem para as telas e Rooney Mara foi escolhida para interpretar a Princesa Tigrinha. O único problema é que a personagem é originalmente nativa americana no livro de J. M. Barrie e Mara é caucasiana sem nenhum tipo de linhagem indígena. Peter Pan, além de ter sido um fracasso de bilheteria com uma história fraca e mal contada, trouxe a tona a discussão sobre a representatividade indígena nas telas e fora delas com o diretor Joe Wright defendendo a escolha da atriz para um personagem que, segundo ele “estava lutando contra o regime colonialista do Barba Negra” e que “quando as pessoas verem o filme, elas vão entender (o por quê da escolha da atriz)”.

Mais tarde, Rooney Mara também se desculpou por ter aceitado o papel e ter participado no “embranquecimento” de uma personagem tão importante. 

Princesa Tigrinha nos desenhos

Rooney Mara em Peter Pan

O cânone caucasiano

Recentemente tivemos a notícia de que Gal Gadot interpretará Cleópatra nos cinemas na próxima adaptação da Paramount sobre a vida da Faraó com direção de Patty Jenkins, as duas trabalharam juntas em Mulher-Maravilha (2017) e na sequência Mulher-Maravilha 1984 (2020) que estreia ainda esse ano nas salas de cinema e simultaneamente na plataforma de streaming HBOMax. 

Gadot entra para o célebre grupo de atores que fogem completamente das suas características para interpretar personagens que, segundo historiadores, não eram brancos.

Elizabeth Taylor como Cleópatra

No caso de Cleópatra, que já foi interpretada por Elizabeth Taylor – também caucasiana –  no filme com o mesmo nome de 1963 dirigido por Joseph L. Mankiewicz, as coisas são um pouco mais complexas. Muitas pessoas saíram em defesa da atriz dizendo que ela é do Oriente Médio e assim não pode ser considerada caucasiana “por completo”. 

A maioria dos historiadores diz ser difícil identificar a real descendência da Faraó que governou o Egito, mas que estudos indicam que a sua mãe era do norte do continente africano e seu pai macedônio-grego, tornando-a birracial. Além disso, o fato da atriz ser israelense entra em uma nova gama de conflitos étnicos.

Maria Madalena e o mais longo apagamento histórico

Hollywood gosta de contar histórias já contadas antes em outros meios ou formas, e nenhuma história é mais contada ou conhecida que a de Jesus Cristo – e nenhuma imagem é mais difundida como a de um Jesus Cristo caucasiano.

Jim Caviezel em A Paixão de Cristo (2004), Christian Bale em Maria, Em Nome da Fé (1999), Willem Dafoe em A Última Tentação de Cristo (1988) e Max Von Sidow em A Maior História de Todos os Tempos (1965) são alguns dos nomes que já interpretaram Jesus em obras cinematográficas e a mais recente delas, Maria Madalena (2018), trouxe ainda mais embranquecimento com Joaquin Phoenix no papel de Jesus e Rooney Mara (mostrando que a desculpa pelo embranquecimento da Princesa Tigrinha tenha sido mais um apelo de marketing) como Maria Madalena.

Joaquin Phoenix como Jesus e Rooney Mara como Maria Madalena

Assim como no caso da Cleópatra, pouco se sabe realmente sobre o local de nascimento de Jesus ou sobre sua aparência física. “Certamente ele era moreno, considerando a tez de pessoas daquela região e, principalmente, analisando a fisionomia de homens do deserto, gente que vive sob o sol intenso” – comenta Cícero Moraes, especialista em reconstrução facial forense com trabalhos realizados para universidades estrangeiras e que já fez a reconstituição facial de 11 santos católicos. 

Joaquin Phoenix e Rooney Mara não são, necessariamente, a personificação de pessoas que vivem sob o sol intenso. 

A necessidade, não só de Hollywood mas que ela com certeza ajudou a cimentar, de embranquecer figuras importantes (temos vários exemplos disso no Brasil mas isso fica para um outro momento) vem de uma tentativa de narrativa onde os donos da história e de tudo importante que vem dela, são caucasianos.

O cinema como formador de pensamento e propagação de cultura existe desde sempre, e como tal as pessoas que dele se utilizam devem sim levar em consideração o contexto das obras, sempre. A representatividade é importante, e ela é mais significante ainda como quebra de estereótipos. 

Mostrar um Jesus com feições e traços de um homem do Oriente Médio – e que o Oriente Médio, assim como o continente Africano, é gigante e plural – seria uma mudança de paradigma e de visão, passar a enxergar um grupo hegemônico que é representado sem pensamentos individuais, como pessoas. 

Muito lentamente essa conversa vem tomando cada vez mais corpo, mais forma, mais força; e ainda assim decisões são tomadas que contrariam essa evolução de pensamento e nos fazem lembrar que a representatividade não é somente ocupação do espaço, mas sim tornar aquele espaço seu por completo.

Navegue por nossos conteúdos

CONECTE-SE COM O CINEMASCOPE

Gostou desse conteúdo? Compartilhe com seus amigos que amam cinema. Aproveite e siga-nos no Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Spotify.

DESVENDE O MUNDO DO CINEMA

A Plataforma de Cursos do Cinemascope ajuda você a ampliar seus conhecimentos na sétima arte.