Quando os diretores de Dois Estranhos (2020), Travon Free e Martin Desmond Roe, subiram ao palco para receber o prêmio de melhor curta-metragem no Oscar 2021 eu estava genuinamente feliz por ver ali um realizador negro. 

Quando Free citou os dados que policiais americanos matam 3 pessoas por dia e que a grande maioria dessas pessoas são negras, eu fiquei extremamente contente por ele não se esquivar do assunto. E quando ele cita James Baldwin pedindo para que a nossa dor não seja ignorada diante de uma plateia atônita, eu senti o impacto. 

É aí que Desmond Roe assume o microfone e com um sorriso gigante no rosto agradece a Netflix. 

Travon Free é negro. Martin Desmond Roe é branco. Eu adoraria falar que essas informações não são importantes, mas elas ainda o são. 

Lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos – Malcom X

Eu só fui assistir ao curta alguns dias depois, não li nada a respeito anteriormente, não sabia sobre o que era a história. Mas lembrava claramente do discurso no Oscar.

Dois Estranhos é como Feitiço no Tempo (1993) mas com uma guinada mais sombria. Carter (interpretado por Joey Badass) é um cartonista negro que está saindo da casa da garota que conheceu na noite passada quando é abordado pelo policial Merk (Andrew Howard) e morto. Ele acorda na casa de Perri (Zaria Simone) onde tinha passado a noite anteriormente. Carter então se vê preso no looping de acordar todos os dias e ser morto pelo mesmo policial de diferentes maneiras. 

Travon Free disse escrever o roteiro em poucos dias, algumas semanas depois do assassinato de George Floyd ano passado, isso explica o por que na primeira cena de morte do Carter – existem MUITAS – ele é asfixiado quase da mesma maneira que Floyd, e repete a mesma frase de Eric Garner (assassinado em 2014) “Eu não consigo respirar”. 

Aqui é preciso fazer um adendo. Existem assuntos extremamente importantes, e a violência policial com certeza é um deles, mas são temas que devem ser tratados com cautela e sem pressa. Se não pelo bem da própria obra, pelo bem das pessoas envolvidas nessas situações no seu cotidiano. 

O filme existe para ser provocativo, mas com um roteiro fraco, uma direção sem rumo e uma péssima escolha musical, Dois Estranhos faz tudo que não queria: utiliza-se da dor dos seus para ganhar dinheiro. 

Eu não acredito em uma arte que não seja política. Todas as escolhas tomadas se referem a uma determinada situação e ela sempre será política, mesmo que esteja camuflada e escondida. E no caso do curta, ele existe para ser político, a sua concepção foi essa. 

Carter tenta de todos os jeitos sobreviver durante meia hora. Ele faz diferentes abordagens ao policial mas sem resultados positivos, sempre morrendo no final. Em um determinado momento ele apela para a conversa – não vou mentir, nesse momento eu quase desisti do filme – o policial o leva para casa e eles conversam. Existem vários problemas somente nessa sequência para mim, mas principalmente o fato que não vemos essa conversa acontecer de verdade. Vemos relances, frases soltas, olhares cruéis e inocentes, e é isso.

Ao chegarem na casa de Carter, ele acredita que finalmente conseguiu. É então que Merk mostra que ele também está preso naquele dia, e pior, ele espera ansioso pelo momento em que poderá matá-lo. 

Quando Carter acorda, novamente na casa de Perri, ele conta a ela pela milésima vez o que está acontecendo e diz que vai achar um jeito de voltar para casa, e para o seu cachorro. É verdade, ele está tentando voltar para casa para o seu cachorro, a propagando do produto Furbo (um aparelho que você controla por app pelo seu celular onde ele reproduz para o seu cachorro a sua mensagem de voz) no começo do curta se torna ainda mais bizarra quando o filme acaba. 

No que deveria soar como um final catártico, Carter desce as escadas do prédio determinado a chegar na sua casa e encontrar seu cachorro – eu amo animais mas essa insistência em transformar a situação em uma coisa leve me deixou furiosa – ao som de it’s the way it is, somethings will never change (é o jeito que as coisas são, algumas coisas nunca irão mudar) me levou a níveis de descrença que eu não achava mais possível alcançar.

O curta explora a dor real que as pessoas negras sentem e nada mais. A violência que existe no dia a dia, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, já é o suficiente para que não seja necessário passar por isso enquanto vemos um filme. 

Você não consegue mudar o que não consegue encarar – James Baldwin 

Ah, mas toda obra é política, não é mesmo? Então qual o problema em mostrar a violência policial como ela é já que existe um propósito?

Pois eu respondo: aqui esse propósito é inexistente. O filme não dialoga com nada de novo. Ele não aborda a branquitude e as maneiras que o seu racismo nos coloca nesse lugar vulnerável, talvez por falta de tempo, mas eu acredito mais que é por que Free simplesmente não tinha mesmo muito a dizer.

Fazer um filme onde o seu protagonista negro é assassinado de diversas maneiras gráficas e sanguinolentas sem tocar somente uma vez na raiz desse problema, os brancos e o seu racismo, é utilizar a dor do negro como plataforma de ascenção e nada mais. 

A negação é essencial para a continuidade do racismo. Ele só consegue funcionar e se reproduzir sem embaraço quando é negado, naturalizado, incorporado ao nosso cotidiano como algo normal. Não sendo o racismo reconhecido, é como se o problema não existisse e nenhuma mudança fosse necessária. A tomada de consciência, portanto, é um ponto de partida fundamental.

Silvio de Almeida 

Eu sou filha de um casamento inter-racial. Minha mãe é branca e meu pai é negro. Minha mãe sempre contou a história de que, quando estavam prestes a se casar, a avó do meu pai falava muito para ela que o cabelo dos filhos que ela viria a ter seriam iguais aos do meu pai, e que ela teria que ter muita paciência para lidar com aquilo. 

Minha bisavó estava alertando a minha mãe sobre as dificuldades que ela teria por não conhecer aquela realidade. E a minha mãe foi aprendendo desde sempre a como lidar com aquela diferença, por que sim, é diferente. 

A 30 anos atrás podemos dizer que o conhecimento era limitado, não existiam produtos específicos para cabelos crespos, a única solução era o alisamento – e todos destrutivos para o nosso cabelo. Hoje é diferente, temos diversas marcas para escolher e tentar achar o melhor produto para cada tipo de cabelo. 

Esse é um exemplo prático sobre o que não é feito nesse país – e nem nos Estados Unidos. 

Quando as marcas entenderam que se fabricassem produtos diferentes para diferentes tipos de cabelos teriam mais clientes, a decisão ficou fácil. Vamos investir nesse mercado. Agora é possível andar nas ruas e ver muito mais mulheres e crianças negras com seus cabelos naturais. 

O primeiro passo é o reconhecimento. Enquanto esse reconhecimento não existe, nada vai mudar. E esse reconhecimento não precisa vir dos negros, nós já vivemos o racismo todos os dias! Eu sei que ele existe! 

É trabalho do branco e da sua branquitude reconhecer o seu papel para que as coisas possam evoluir. 

Um filme como Dois Estranhos poderia tocar nesses assuntos, poderia trazer as nuances do policial, como ele passou a enxergar os negros como ameaça, de onde vem o seu racismo. Foi na escola, com nossos nomes sempre sendo associados a crianças difíceis? Foi na adolescência, quando as meninas já são hiper sexualizadas e os meninos estão ‘indo pelo mal caminho’? Foi na faculdade, quando era raro encontrar com um de nós nas salas de aula? Foi no noticiário, quando nossos corpos expostos e cravejados de bala fazem parte do café da tarde? 

É trabalho da branquitude se olhar e identificar o que ela faz para que o racismo perpetue. É trabalho da branquitude reconhecer o seu racismo e o que ela pode fazer para mudar a situação. 

Trevon Free e Martin Desmond Roe ganharam o Oscar de melhor curta-metragem com um filme que explora a dor e as feridas do povo negro para ficar claro que o sistema continua forte e operando normalmente.

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