Enquanto o cinema hollywoodiano é dominado por filmes de super-heróis, a “Hollywood” brasileira é dominada pelas comédias globais, mas se você é daqueles que gosta de cavucar um pouco mais, encontrará um cinema expressivo do gênero horror sendo produzido no Brasil. São produções independentes, por pessoas que fazem porque amam, dão seu suor e sangue pela arte – a propósito, a tag line deste é simplesmente: “muito sangue será derramado” – e encontram seu espaço não nos cinemas de shopping, mas em festivais do Brasil e do mundo. Meu favorito deste cinema “marginal” é A Noite Do Chupacabras (2011), do capixaba Rodrigo Aragão.
No filme, Douglas Silva (vivido por Joel Caetano) está voltando à sua terra de origem no interior do Espírito Santo, com sua nova namorada Maria Alícia (Mayra Alarcón). Apesar de bem-vinda, sua chegada é acompanhada da morte dos animais da fazenda, e um clima de rivalidade com uma família vizinha, os Carvalho, e em algum momento surge um chupa-cabras.
Tanto a ideia para este filme, quanto a carreira deste cineasta, começaram a partir de um curta-metragem, O Chupacabras (2005) – tecnicamente, o primeiro curta do Rodrigo Aragão foi Peixe Podre em 2004 –, em que o diretor pôde explorar aquilo que o seu cinema tem de melhor: o gore; efeitos especiais práticos; cenas de ação. Confira:
A geração dos millennials talvez não saiba, o chupa-cabra é uma criatura responsável por ataques a animais no qual as vítimas eram encontradas sem nenhuma gota de sangue, alguns órgãos removidos, retirado por um orifício milimétrico; não apenas um, mas vários animais eram mortos em uma noite; uma informação que os jornais da época quase não divulgavam: as vítimas tinham suas orelhas arrancadas. Não apenas cabras faziam parte do seu menu, mas galinhas, cães, e vacas. O primeiro ataque da criatura foi registrado em 1995 em Porto Rico, dois anos depois chegou ao Brasil e se estendeu aos outros países da América Latina, e como aqui é o país do “hue hue”, os programas sensacionalistas como Gugu e Ratinho transformaram o assunto em chacota. Mas se você respeita, acredita, ou quer conhecer mais sobre o chupa-cabra, eu recomendo este livro que traz uma série de relatos e evidências coletados por Carlos Alberto Machado, que teve acesso aos casos e trata o assunto com a seriedade que merece.
Embora me interesse pelo insólito, A Noite Do Chupacabras me chamou a atenção por um outro motivo, é uma história sobre uma rixa entre duas famílias, o que remete a Romeu e Julieta, ou Por Um Punhado De Dólares (1964), mas o conflito vem de algo além, a começar pelo racismo vivido pelo Seu Pedro (Markus Konká), que matou o sogro de desgosto ao saber que sua filha se casara com um negro, passando sobre a temática do amor proibido recorrente no filme. Mas isso nada tem a ver com a família Carvalho, a rivalidade nasceu quando o patriarca Carvalho se ofereceu para comprar as terras da família Silva, mas foi encontrado morto e roubado. Os Carvalho acusaram os Silva, e para evitar um massacre, Seu Silva cedeu suas terras a troco de “paz”.
O protagonismo é dado aos Silva, mais precisamente ao filho mais novo, Douglas, o homem comum que normalmente vemos nos filmes de terror e irá enfrentar situações adversas, aqui parece carregar um peso nas costas. Quando vemos sua backstory percebemos o seu envolvimento e como ele poderia ter evitado toda aquela tragédia – exceto a parte do chupa-cabras, esta é uma força da natureza – e voltando ao tema do romance proibido, mostrado antes com o seu pai.
Em produções independentes é comum acumular funções, Mayra Alarcón e Kika Oliveira, ambas produtoras e atrizes. Mayra é Maria Alícia, a nova namorada de Douglas, uma personagem mais passiva, que obedece calada, ela é o olhar externo que foi levada àquela situação e está sendo apresentada àqueles personagens; Em contrapartida, Kika faz a irmã de Douglas, com colhões para enfrentar a criatura cara-a-cara.
O patriarca da família é o Seu Pedro, vivido por Markus Konká, um ator mais experiente, tendo atuado em dois filmes dos Trapalhões nos anos 70, Running Out Of Luck (1987) com ninguém menos que Mick Jagger, e na minissérie da Globo Dois Irmãos (2017), um talento redescoberto por Rodrigo Aragão, que recebeu uma homenagem no Festival de Cinema de Vitória em 2016. Seu Pedro é um homem obstinado, mesmo que o sogro seja contra o casamento, ele se casou; Quando o Carvalho fez a proposta para comprar suas terras, ele recusou; Quando o chupa-cabra matou seus animais, ele não descansou e foi à caça.
Do lado da família Carvalho o destaque é para o filho Ivan, vivido por Petter Baiestorf, diretor independente que começou sua carreira em 1992, em plena era Collor, quando o cinema brasileiro praticamente não existia, mas como dizia Ian Malcolm “a vida encontra um jeito”. Eu já tive o prazer de trabalhar ao lado de Petter, uma pessoa determinada, que não para as filmagens para comer nem descansar, mesmo estando morrendo de fome e sono, tão determinado que mesmo sendo vegetariano, se submete a comer carne para o filme.
Além desses atores, temos Cristian Verardi, um sósia mais novo e mais magro do Rodrigo Aragão. Não vou comentar muito sobre o seu personagem neste filme, porque foi uma surpresa muito agradável para mim, quanto menos você souber sobre o seu personagem, melhor, até mesmo para criar um mistério. Se você o viu em A Noite Do Chupacabras e achou seu rosto familiar, é porque provavelmente você já o viu antes, muito provavelmente no cinema da Usina do Gasômetro em Porto Alegre, onde Cristian trabalhou. Ou talvez o tenha visto sendo stalker no curta Reflexo (2017), de Rodrigo Portela, só não deixo o link, pois o filme ainda está rodando festivais, só digo que é muito bom.
O elenco não estaria completo sem Walderrama dos Santos, que aparece rapidamente na cena do bar, mas seu grande mérito neste filme é por ser o personagem título – eu já tive oportunidade de usar uma das máscaras feitas pelo Rodrigo, é uma sensação claustrofóbica, agora imagine para o Walderrama, cuja fantasia cobre todo o corpo –. Rodrigo Aragão se especializou em efeitos especiais feitos na raça, por isso é de se esperar bons efeitos em seus filmes. Provavelmente você já viu um de seus trabalhos, há pouco tempo viralizou um vídeo sobre um suposto lobisomem capturado vivo em Pernambuco, a verdade é que trata-se de um teste de maquiagem para o filme As Fábulas Negras (2015) – o segmento do lobisomem foi dirigido pelo Petter Baiestorf – que algum anônimo republicou com o título falso.
Outra marca registrada no cinema do Rodrigo Aragão é o gore que deixaria Sam Raimi e Peter Jackson orgulhosos. Cenas de vômito, decapitação, faca atravessada no braço, bacia de sangue, focinho de porco, e todo tipo de ferimentos. Eu cometi o erro de assistir ao filme de barriga cheia e alerto para que não o repitam. Já que falei em Sam Raimi, Rodrigo Aragão faz uma homenagem ao diretor, as palavras “Klaatu barada nikto” são usadas em um ritual. OBS: Estas palavras foram proferidas antes em O Dia Em Que A Terra Parou (1951), mas foi Sam Raimi quem as tornou icônicas em Uma Noite Alucinante 3 (1992).
A Noite Do Chupacabras é o segundo filme da saga que Rodrigo Aragão está criando, iniciada por Mangue Negro (2008), e tem Mar Negro (2013) como o terceiro, e no momento em que escrevo, Rodrigo está produzindo o quarto filme, Mata Negra. Alguns elementos neste fazem ligação com os outros filmes: como disse antes, Walderrama dos Santos, faz um cameo como o Luís da Machadinha, protagonista de Mangue Negro; ele é servido no bar pelo Albino, personagem vivido por ele próprio em Mar Negro; a perseguição de Douglas pelos Carvalho é reprisada em Mar Negro; e para concluir, a pedra da bica é o local onde os dois primeiros filmes terminam.
Todos esses personagens são meros atores no palco de uma peça shakespeariana banhada em sangue, derramado em sua maioria por eles próprios, e sobre esse espetáculo a analogia que eu faço sobre o Chupacabras diz respeito à sua natureza monstruosa, que se alimenta de gado, e no contexto do filme, os personagens são gado.
Como disse antes, você precisa cavucar para encontrar obras como esta, uma vez que as salas de cinema e grandes lojas não costumam abrir espaço para este tipo de produção, mas eu posso facilitar para você e deixar um link para a loja virtual da produtora Fábulas Negras. Rodrigo Aragão encontrou espaço no canal Space da TV a cabo, seu filme mais recente, Fábulas Negras (2015), que une toda essa galera e o José Mojica Marins, passa tanto quanto A Lagoa Azul (1980) passava na Sessão da Tarde.