Escrevo este texto ao início de outubro de 2020, o fatídico ano do descaso com o meio ambiente e o descaso com a vida das pessoas em relação ao Coronavírus. Estamos a quase oito meses em isolamento social (nem todos o seguem), quase enlouquecendo (eu, pelo menos estou), e é neste contexto que eu me pego pensando: “se está difícil levar a vida preso num apartamento, imagina como é para um animal num zoológico!”. Pensando nisso, vamos embarcar agora no documentário Blackfish: Fúria Animal (2013) pra entender melhor essa vida de confinamento.

Neste documentário, acompanhamos a trajetória da orca Tilikum, desde a sua captura ainda filhote em 1983, a vida no SeaWorld, a morte (e quase morte) de vários treinadores de baleias como foi o caso de Dawn Brancheau em 24 de fevereiro de 2010.

O QUE LEVA UMA PESSOA A QUERER TRABALHAR COM ANIMAIS SELVAGENS?

Domar um animal selvagem cria uma sensação de empoderamento, a ilusão de controlar algo que é mais forte do que nós. Além disso, ver um animal feroz performando para um público desempodera o animal, o coloca a uma posição de subserviência ao seu domador. Soma-se isso à apresentação majestosa dos parques aquáticos, e o público já está capturado, essa atração fala ainda mais alto quando se é criança e não tem muita consciência do quão árduo foi chegar àquele resultado, como relataram alguns ex-treinadores do SeaWorld entrevistados neste documentário. Abrindo um parêntese aqui, esse maravilhamento que descrevi também é o que leva às pessoas a se envolverem com o Tiger King (2020). E se você se lembra de Free Willy (1993), o personagem Jesse captura bem essa sensação.

Tanto para os treinadores quanto para o público, a proximidade entre uma orca (que pode chegando a medir 10m de cumprimento, e pesar 10 toneladas) dá uma sensação de pequenez do ser humano. O treinador cria laços com o animal – assim como o primeiro voo estabelece os laços entre um Na’vi e um Banshee da Montanha em Avatar (2009) –, domar um animal para uma apresentação é trabalhar em equipe, é preciso haver sintonia. Aparentemente, a amizade entre um humano e um animal é mais forte do que entre dois humanos, não existe interesse (sexual ou financeiro), não existe afinidade de assuntos (uma baleia, ou qualquer outro animal, não se torna seu amigo por você torcer para determinado time, ou por você gostar das mesmas músicas que ele), o que existe é a reciprocidade, ou pelo menos em teoria.

Da esquerda para a direita: (Foto 1) Um adulto e uma criança se encantando ao ver uma orca num aquário; (Foto 2) Foto de Dean Gomersall, ex-treinador do SeaWorld em seu primeiro dia de trabalho.

“CALL ME ISHMAEL”*

Eu me lembro que quando criança, fui ensinado que a orca (Orcinus orca) também era conhecida como “baleia assassina”, mas de onde vinha esse apelido? Talvez pelo formato dos dentes, ou técnicas de caça, mas o fato é que quando o animal ganhou esta alcunha, pouco se conhecia sobre ele.

Além de trazer depoimentos de ex-treinadores, o documentário também traz o testemunho de John Crowe, um homem que embarcou na caça às baleias, e em 1970, participou de uma captura de filhotes nos arredores de Penn Cove (WA), que segundo ele relata, enquanto capturavam os bebês, as outras baleias da família ficavam próximas sem poder fazer nada (se fossem baleias assassinas de verdade, elas teriam entrado em frenesi), segundo Crowe é como tirar uma criança dos seus pais. Crowe diz que sentiu culpa naquele momento, mas continuou trabalhando, e para piorar a situação, para esconder as baleias mortas naquela caçada, ele e outros caçadores tiveram de abrir os seus corpos e colocar pedras no seu interior para que afundassem.

Encontrei um vídeo sobre este evento, o vídeo mostra que apesar do esforço em esconder as evidências, as carcaças podres apareceram na praia, e isso criou uma grande repercussão, o testemunho de John Crowe ajudou a decisão judiciária na proibição de captura de orcas no território americano, em 1976. O vídeo mostra a reação insensível do chefe da operação de captura, Don Goldsberry, “eu não anunciei num outdoor que eu perdi as baleias” e “fiz isso [esconder as carcaças com âncora e pedras] porque ninguém iria pegá-las [mortas]”, é quase tão cínico quanto o atual ministro do meio ambiente do brasil. E o pior disso tudo é que pesquisando sobre quem era Don Goldsberry encontrei um suposto legado de um pioneiro no campo dos mamíferos aquáticos, responsável por mudar nossa percepção sobre esses animais, sendo o primeiro treinador de uma orca, Namu, desfazendo a visão de que orcas são “baleias assassinas”, levando-nos a uma melhor compreensão sobre esses animais. Uma coisa é você estudar um peixinho num aquário, outra coisa é você estuda-lo no seu habitat natural.

Um dos filhotes de baleia capturado nesta caçada foi batizada de Lolita, que já está há 50 anos em cativeiro no Miami Seaquarium. Já que o SeaWorld não podia mais capturar baleias nos EUA, eles o fizeram em outras regiões, como a Islândia, e em 1983 o filhote macho de 2 anos foi capturado no Atlântico Norte, foi batizado de Tilikum.

De cima para baixo: (Foto 1) John Crowe, que trabalhou na captura de orcas até 1970, e se tornou ativista pelos direitos dos animais após se dar conta da barbaridade dos seus atos. John faleceu em 2015, seu depoimento foi crucial para Blackfish; (Foto 2) Filmagens 8mm da captura de filhotes de orca em Penn Cove.

 

TILIKUM FAZ PRIMEIRA VÍTIMA NO SEALAND

Nos primeiros anos em cativeiro no Sealand of the Pacific (no Canadá), Tilikum era como uma criança brincalhona, respondia bem aos comandos, amigável com os professores treinadores, mas a tática de adestramento envolvia punição, o treinador o colocava para contracenar com outra baleia já treinada, mas se Tilikum “errasse o passo”, ambas baleias ficavam sem a recompensa (peixes), e isso deixava a outra orca frustrada e descontava essa frustração em Tilikum, arranhava-o com seus dentes, o pobre coitado aparecia com o corpo todo marcado. Quem assistiu Nascido Para Matar (1987) sabe do que eu estou falando, aquela cena em que o Sargento Hartman diz que se o Soldado Pyle não fizer os exercícios direito, todo o pelotão será punido, e no meio da noite, todos espancam Pyle com sabonetes enrolados numa toalha.

Durante o dia sendo punido pelo treinador, e à noite confinado num “módulo” que media 6 x 9m, ou seja, 54m² (vamos enfatizar isso: 54m² é pequeno até para um apartamento, imagine este espaço comportando três baleias, sendo a menor delas, Tilikum, medindo 5m de comprimento), com duas fêmeas agressivas, esta rotina deixaria qualquer um louco, a ponto de matar alguém, e foi o que aconteceu em 20 de fevereiro de 1991. A vítima foi Keltie Byrne, 23 anos de idade, estudante de biologia marinha, nadadora profissional, que trabalhava meio-período no Sealand. Ela escorregou no tanque com as três orcas, que a puxaram para baixo e a arrastaram de um lado para o outro, enquanto os treinadores tentavam salvá-la atirando uma boia amarrada a uma corda para puxá-la, mas as orcas a levavam para longe. Keltie conseguiu chegar à superfície três vezes para respirar e gritar por socorro, mas levaram várias horas até que conseguissem retirar seu corpo da água. Os jornais publicaram uma notícia falsa, de que ela afogara acidentalmente

Uma coisa que me incomoda neste documentário é que a morte de Keltie é relatada por duas amigas que visitavam o Sealand naquele dia, e uma delas (Nadine Kallen) narra o trágico fato com um sorriso no rosto, como se não houvesse empatia, ou como se fosse algo engraçado – eu até pesquisei sobre ela para conferir se tem histórico de psicopatia, mas não, é uma simples vendedora de cadernos personalizados – . O parque foi fechado depois deste incidente e o SeaWorld de Orlando (FL) cresceu os olhos em Tilikum, e comprou-o para ser um reprodutor.

Tilikum com sua pele toda marcada pelos dentes das orcas fêmeas do Sealand of the Pacific.

 

TREINADOR ESMAGADO

Antes de comentar sobre a vida de Tilikum no SeaWorld, é importante sabermos melhor com o que estamos lidando, me referindo ao parque aquático. Veja no vídeo a seguir, um incidente em 1971 no qual uma treinadora é atacada durante uma campanha publicitária, e a sua ração décadas depois.

Antes de apresentar o próximo incidente, precisamos voltar nossos olhos a um outro parque aquático, o Marineland of the Pacific, em Los Angeles, aberto em 1954, que no seu auge contava com cinco orcas capturadas no Canadá, uma delas era o macho Orky II, a maior orca mantida em cativeiro no mundo, capturada em 1968. Orky II era temperamental, não respondia muito bem aos comandos, gostava de testar os treinadores, em 1970 ele chegou a puxar um treinador para o fundo do tanque (ele quase perdeu a consciência, mas foi resgatado com vida), outro incidente aconteceu em 2 de maio de 1978 com a treinadora Jill Stratton (que também foi resgatada com vida), e por causa disso Orky II passou a não mais fazer apresentações.

Quando o Marineland of the Pacific passou por uma reforma em 1987, o prejuízo forçou o parque a fechar as portas e vender os animais. Orky II foi transferido para o SeaWorld de San Diego. Em 23 de novembro de 1987, durante uma apresentação, o treinador John Sillick estava montado sobre uma orca fêmea, de costas, sem ver o que estava diante do animal que guiava, Orky II salta da água e cai sobre o treinador, esmagando-o – Sillick sobreviveu, passou por cirurgias, pinos nas costas, perna, e pélvis.

Aos novos treinadores contratados, a história contada atribuía a culpa do incidente ao próprio John Sillick. Mas apurando melhor sobre o caso, vários erros podem ser constatados: 1) Orky II não estava acostumado a fazer apresentações desde 1978, podemos dizer que ele estava “fora de forma”; 2) No Marineland of the Pacific, Orky II convivia com outras orcas da mesma região, Pearl Harbour, esse grupo social tinha uma linguagem própria, e até mesmo os treinadores tinham uma linguagem de sinais própria para se comunicar com os animais, ao ser transferido para o SeaWorld, Orky II passou a conviver com outras orcas vindas da região da Islândia, que tinham uma vocalização distinta (como se falassem outro idioma), e os treinadores usavam diferentes gestos para passar os comandos.

Orky II morreu no ano seguinte de uma série de doenças segundo o laudo médico.

Eis um vídeo do incidente com John Sillick.

 

HISTÓRICO DE SEPARAÇÃO NO SEAWORLD

Em 26 de setembro de 1985 no SeaWorld, a orca Kalina deu a luz a Shamu. A bebezinha atraiu muito público ao parque. Sendo apenas um bebê, às vezes Shamu roubava a cena, e às vezes atrapalhava o espetáculo, então aos 4 anos de idade, os executivos do parque decidiram que Shamu seria levada para outro parque, separada de sua mãe. A separação abalou terrivelmente a orca Kalina, que chorava pesarosamente.

Outro caso de separação de um filhote de sua mãe no SeaWorld aconteceu em 1995. A mãe se chamava Kasatka, e a bebê Takara, que fora vendida para outro parque na Flórida. A reação de Kasatka fora a mesma de Kalina anos antes. Parágrafos atrás eu mencionei o depoimento de John Crowe, que em 1970 se sentira culpado pela captura e separação de dois filhotes de Orca (um deles também foi batizado Shamu), aqui estamos vendo a mesma coisa acontecendo, e como se isso não fosse o bastante, esse tipo de ato cruel também acontece entre humanos. Em 2018, foi noticiado em diversos jornais que famílias (de humanos) eram separadas na fronteira dos EUA com o México.

De cima para baixo: (Foto 1) Transferência do bebê Shamu; (Foto 2) Protestos contra a separação de famílias de imigrantes mexicanos acontecendo em frente à Casa Branca. No cartaz lê-se “Parem de enjaular crianças!”.

THAT MEANS I HAVE TO COMPETE WITH SHAMU**

Tilikum foi transferido para SeaWorld em 9 de janeiro de 1992, porém pouco se sabia do passado de Tili, ou melhor, pouco era revelado. Possivelmente os treinadores inadvertidos acreditaram na versão dos jornais, de que Keltie havia se afogado, ou fora morta por uma das fêmeas no SeaLand. Ele era atacado constantemente pela fêmea Katina e as outras baleias, isso porque as baleias são predominantemente matriarcais – ao contrário da nossa sociedade que quer impor o patriarcado goela abaixo – então os treinadores tiveram de separá-lo fisicamente das fêmeas do parque, seu único momento fora deste tanque era no final das apresentações, em que ele chegava para dar um grande “splash” na plateia.

Apesar da vida conturbada que ele levava, Tilikum era querido pelos treinadores, parecia feliz ao lado deles. Durante um espetáculo em que tudo parecia estar correndo bem, uma das treinadoras, Liz, estava na água com Tilikum para o encerramento, ele tentara agarrar o braço dela, e a perseguira fora da água. As filmagens desta apresentação tiveram de ser deletadas.

O caso foi parar na corte, OSHA (Administração de Segurança e Saúde Ocupacional) contra o SeaWorld, a treinadora Kelly Clark foi impelida a dizer que Tilikum não apresentava um comportamento que poria a segurança dos treinadores em risco. Isso foi uma mentira, pois os documentos da compra de Tilikum advertiam isso.

Da esquerda para a direita: (Foto 1) Reprodução do julgamento onde a curadora Kelly Flaherty Clark se justifica com uma acusação que nada tem a ver com o caso. É possível encontrar a transcrição deste julgamento na internet, mas com páginas faltando; (Foto 2) Página dos documentos da compra de Tilikum, que atestam que ele “às vezes avança contra o treinador”.

 

BALEIA REPRODUTORA

SeaWorld comprara um problema… ou não, visto que o verdadeiro interesse por Tilikum era o seu sêmen, muito valioso, e usado para emprenhar as orcas fêmeas do parque, e até mesmo ser vendido para outros parques aquáticos. A coleta do esperma é feito da seguinte forma: o treinador masturba a baleia com uma vagina de vaca cheia de água quente. Vários ativistas da PETA já denunciaram contra esta prática. OBS: A coleta de sêmen de outros animais como cavalo, não é tão diferente assim. Cabe uma ressalva: quem lucra com a venda de sêmen desta forma, nunca teve de pegar no pênis de uma baleia ou um cavalo para estimulá-lo.

O perigo desse tipo de reprodução é que os filhotes de um animal que tem histórico de atacar humanos pode carregar esta carga genética também. Como você pode ver na imagem a seguir, Tilikum é o pai biológico de 21 orcas no SeaWorld.

 

TILIKUM FAZ SEGUNDA VÍTIMA

Em 6 de julho de 1999, o corpo de um homem de 27 anos, Daniel P. Dukes, foi encontrado no tanque onde Tilikum passa as noites. O homem estava nu, sobre as costas do animal, apresentava sinais de mordida, o fisioterapeuta Michael Dougherty foi quem encontrou o corpo, as genitálias da vítima haviam sido arrancadas. Outro funcionário que chegara cedo naquele dia, Arturo Cordoba Jr., disse que não sabia identificar se o corpo pertencia a um homem ou a uma mulher. O que levanta muitas suspeitas neste incidente é por que seu corpo só foi encontrado pela manhã, apesar de toda a equipe noturna, seguranças e um treinador noturno, câmeras por todo o parque, incluindo debaixo d’água, nada foi registrado, ninguém ouviu nada. A equipe de relações públicas do SeaWorld nos deu algumas versões dos fatos: Daniel havia sido preso antes do ocorrido, matado três policiais antes de se esconder no SeaWorld; ele era mentalmente instável; ou ele pulou a cerca para o interior do parque durante a noite; ou ele ficou escondido em algum lugar até que o parque fosse fechado; ele queria ter uma experiência com uma das orcas, se despiu e foi nadar num dos tanques (as roupas dele foram encontradas na lateral da piscina, portanto ele entrou nu). A causa da morte que foi a público foi que Daniel tivera hipotermia e se afogado.

Os pais de Dukes abriram um processo contra o SeaWorld em julho, mas em outubro retiraram a queixa, ninguém sabia ao certo se houve um acordo, o fato é que os advogados do SeaWorld eram muito poderosos e poderiam fazer qualquer acusação contra Daniel, inclusive de invasão. O inquérito sobre a morte de Daniel durou apenas 20 dias, há relatos de que Daniel visitou o parque naquele dia, e criou atrito com um dos seguranças (verdade ou não, eu não sei), e há também registros de que Daniel stalkeava invadira a casa de Richard Garriott, desenvolvedor de games.

Mesmo depois de sua morte, Daniel Dukes fora atacado nas redes sociais, mas também foi defendido por pessoas mais próximas dele, dizendo que ele era apenas desequilibrado, mas não perigoso. Daniel provavelmente não media suas ações, não sabia o que poderia acontecer ao entrar no tanque com uma baleia assassina, mas o SeaWorld tem sua parcela de culpa por negligência, ou incompetência por não ter impedido a suposta invasão da vítima. Provavelmente Daniel assistira Free Willy e achou que a orca o levaria pra fora da piscina.

 

ORKID PUXA TREINADORA

Como dito anteriormente, os treinadores acreditam na relação entre eles e os animais com os quais trabalham, eles acreditam nessa reciprocidade, por esse motivo, mesmo tomando todas as precauções, um ataque é sempre imprevisível.

Em 8 de julho de 2002, a treinadora de 28 anos Tamarie Tollison foi hospitalizada com fraturas expostas no antebraço. O incidente ocorreu enquanto ela estreitava sua relação com as orcas Orkid (filha de Orky II que mencionei anteriormente) e Splash, brincando e conversando com elas, e no instante seguinte foi puxada para dentro d’água pelo pé. As duas orcas puxavam a treinadora continuamente enquanto ela gritava por socorro. Outro treinador agiu depressa, e abriu o portão que dava acesso ao tanque com a fêmea dominante, Kasatka, assim, Orkid soltou Tamarie – isso me lembra o clímax de um filme ruim, Jurassic World (2015) – tudo isso foi gravado por um turista.

É desconfortável culpar a vítima por um ataque/agressão, mas nesse caso, Tamarie errou ao se aproximar do tanque sem um olheiro, e ao brincar de colocar o pé na boca da orca.

De cima para baixo: (Foto 1) Tamarie Tollison brincando de colocar o pé na boca da orca; (Foto 2) Tamarie após ser salva. Veja o estado em que seu braço direito se encontra.

 

MAIS UM TREINADOR À BEIRA DA MORTE

Em 29 de novembro de 2006, foi a vez de Kasatka atacar seu treinador, Ken Peters. Ele mergulhara no tanque para realizar um “rocket hop” – a orca impulsiona o treinador com o seu focinho – quando Kasatka o agarrou pelo pé e o puxou para o fundo várias vezes, passando períodos de 1min ou 1,5min submerso. Cada vez que subia à superfície, Peters parecia cada vez mais cansado e ofegante, porém permaneceu calmo durante todo o tempo. Depois de nove minutos dessa rotina, Kastka o soltou, os funcionários do parque já estavam preparados com uma rede de contensão, que mesmo depois que Peters a atravessou, a orca continuou a persegui-lo, atravessando por cima da rede.

É possível especular que a calma de Ken Peters e o seu relacionamento com Kasatka foi o que a levou a soltá-lo, um testamento de que manter a calma nesta situação é imprescindível. Ou você pode enxergar este caso como uma quase fatalidade. O que Blackfish não mostra, e isso só aumenta a tensão é que esta não foi a primeira vez que Kasatka atacara Peters, em 12 de junho de 1999 ela também o puxara pelo pé durante uma apresentação. Pesquisando a genealogia das orcas do SeaWorld, Kastaka tivera um bebê, Takara, em 1991, que foi transferida do parque em 2004, ela pode ter guardado rancor de Peters por essa separação.

O incidente completo você consegue ver no seguinte vídeo:

 

INCIDENTE NO LORO PARQUE

Na véspera do natal de 2009, o treinador de 29 anos Alexis Martínez morreu durante um ensaio para a apresentação de natal no Loro Parque em Tenerife (esta é uma das maiores atrações turísticas da Espanha, um dos únicos parques aquáticos da Europa que abriga orcas, tem a maior exibição de pinguins e o maior tanque de tubarões do mundo), nas Ilhas Canário na Espanha. Martínez era o treinador mais experiente e dedicado do parque, a orca que o matou, Keto, tinha 14 anos e fora trazida do SeaWorld de Orlando. A baleia o nocauteou no peito, deixando-o inconsciente, Martínez afogou antes que os treinadores pudessem resgatá-lo. Os executivos do parque atestam que isto não foi um ataque, mas um acidente causado pela rigidez nos treinamentos, contudo o parque descreve Keto com um perfil “imprevisível”. A autópsia no corpo de Martínez revela que ele morreu após sérias lesões, compressões, fraturas e rupturas de órgãos vitais com marcas de mordidas por todo o corpo.

Em 2004 e 2005, antes que as primeiras orcas fossem trazidas ao Loro Parque, oito treinadores, incluindo Alexis Martínez, fizeram um treinamento no SeaWorld no Texas e na Flórida. As duas orcas, Keto e Tekoa (ambos machos) e Kohana e Skyla (fêmeas), chegaram ao parque espanhol em fevereiro de 2006, vendidas pelo SeaWorld. Apesar do treinamento prévio dos treinadores, o Loro Parque não estava completamente preparado para receber as orcas, os tanques não eram adequados, e isso acarretou uma série de problemas à saúde dos animais – as orcas em cativeiro costumam morder as grades, a parede, e as bordas dos tanques, e isso danifica intensamente sua dentição, além de ingerir estes pedaços que elas mordiscam, causando problemas no estômago.

Em Blackfish, Suzanne Allee, ex-supervisora de monitoramento do Loro Parque diz que a atração turística não tem uma boa reputação, além do incidente que vitimou Alexis Martínez, outra orca macho, Tekoa, atacara uma treinadora aprendiz, Claudia Vollhardt, em outubro de 2007, deixando-a hospitalizada. As apresentações com orcas foram paralisadas por mais de seis meses, e como de praxe, os executivos do parque descaracterizaram o ataque como mero “acidente”; Outros escândalos envolviam o contrabando de pássaros raros por parte do curador da área dos pássaros; As apresentações com orcas foram encerradas no Loro Parque após a morte de Alexis Martínez.

Este caso também foi parar na justiça, tratava-se de orcas vendidas pelo SeaWorld, cujos treinadores receberam treinamento pelo SeaWorld, o Loro Parque era  monitorado constantemente por funcionários do SeaWorld, presencialmente ou remotamente via câmera. No tribunal, a treinadora/curadora dos animais do SeaWorld Kelly Flaherty Clark (a mesma pessoa do caso Liz, quatorze parágrafos atrás) negou qualquer envolvimento do SeaWorld com o Loro Parque.

Alexis Martínez, treinador de orcas morto no Loro Parque em Tenerife.

 

TILIKUM FAZ TERCEIRA VÍTIMA, DAWN BRANCHEAU

Em 24 de fevereiro de 2010, Tilikum faz sua terceira vítima, a treinadora de 40 anos Dawn Brancheau. Existe uma série de detalhes neste caso, mas para compreendermos melhor é preciso observar numa ordem coronlógica, então na reportagem do vídeo é dito que segundo turistas, Tilikum não estava respondendo às ordens no show anterior, isso também é dito no documentário acrescido da informação de que a apresentação teve de ser interrompida. Dawn é descrita pelos seus colegas de trabalho como alguém muito dedicada, ela costumava ver os vídeos de suas apresentações e criticava a si mesma no intuito de melhorar sua performance, então Dawn se sentiu na obrigação se redimir da apresentação ruim. Durante um ensaio, Tili estava obedecendo bem aos comandos, mas num determinado momento em que Dawn apita chamando-o de volta, Tili não ouve o chamado e acaba dando uma volta a mais na piscina. A confusão começa por aí, ele não recebe a recompensa que esperava, o que ele recebe é uma resposta neutra, que indica que ele fez algo de errado, isso o leva à frustração. Apesar de não ter ouvido o apito da treinadora, Tilikum percebe pelo som enquanto Dawn pega os peixes no balde, que este está ficando vazio, mais um ponto para aumentar sua frustração. Dawn se encaminha para o lado oposto da piscina, se deita para acariciar o animal que se aproxima, é neste momento que Tili a pega pelo braço e a arrasta para dentro d’água.

Turistas que estavam presentes e com a câmera em prontidão relatam o que aconteceu. Como a família de Dawn luta na justiça para retirar vídeos e fotos da internet, mas não conseguiu, vou respeitar sua vontade. Contudo, o vídeo pode ser visto em Blackfish com a análise de outros treinadores do SeaWorld. Após a morte de Dawn, o SeaWorld alegou que a treinadora havia escorregado, caído na piscina e se afogado, mas quando os jornais ouviram testemunhas que contradiziam esta versão, executivos do SeaWorld alegaram que Dawn foi puxada pelo cabelo, que estava amarrado, o que é uma forma sutil de colocar a culpa na própria vítima (é como dizer que a mulher que anda de saia curta é porque quer ser estuprada). Veja a seguir uma reportagem que o Record News fez na semana seguinte ao incidente. A repórter enfatiza no final da reportagem que nenhuma treinadora pode deixar o cabelo preso em rabo de cavalo como Dawn estava no fatídico dia (prender o cabelo em coque não impede que uma orca puxe o treinador pelo braço ou perna como já vimos acontecer antes).

OBS: perdão pela qualidade do vídeo, é o único que consegui encontrar. Há um glitch que deixa o som fora de sincronia.

Esta reportagem foi gravada uma semana após a morte de uma treinadora, é aquela velha máxima: “O show deve continuar”. A versão contada pelo SeaWorld de que Dawn foi puxada pelo cabelo não teve muita credibilidade apesar do esforço, então, o que não nos é dito em Blackfish é que o SeaWorld criou uma terceira justificativa, ainda menos plausível de que Dawn estava realizando um número em que ela ficava por cima de Tilikum enquanto este nadava de costas, e no instante seguinte…

 

A POLARIZAÇÃO

Aqui temos um momento de ruptura neste documentário, uma polarização entre aqueles que se posicionam contra o SeaWorld diante de todos esses fatos apresentados, e aquela voz dissidente que tem sua opinião favorável à empresa, essa voz solitária no documentário é o ex-treinador Mark Simmons, que diante da câmera diz acreditar ser falsa a alegação de que manter animais em cativeiro os deixa enlouquecidos, e que a morte de Dawn Brancheau é um caso isolado, acredita não conseguir imaginar um mundo sem o SeaWorld. John Jett, também ex-treinador, em determinado momento do filme diz que o único motivo pelo qual permaneceu trabalhando no SeaWorld por tanto tempo foi porque sentia pena de Tilikum, ele reconhece que mesmo tendo depositado amor por esses animais marinhos, o dono legítimo deles era o parque aquático, mas de forma alguma ele quer que sua filha cresça acreditando que esse tipo de tratamento seja aceitável.

Da esquerda para a direita: (Foto 1) John Jett, se posicionando contra as práticas do SeaWorld; (Foto 2) Mark Simmons se posicionando a favor das práticas do SeaWorld.

E aqui cabe uma observação sobre a direção de um documentário (você pode aprender mais no curso com Fábio Monteiro): existe um consenso, um acordo comum feito entre o documentarista e o expectador sobre o ponto de vista. Em sua fase embrionária, a diretora Gabriela Cowperthwaite não tinha uma opinião formada, ela apenas queria levantar um questionamento: o que leva um animal altamente inteligente a literalmente morder a mão que o alimenta? Após dois anos de pesquisa, leitura de autópsias (algumas dessas são de fácil acesso na internet), entrevistas e fatos, ela nos apresenta seus argumentos, e seus argumentos são fortes o suficiente para identificar a raiz de um problema. Mark Simmons e outros funcionários do SeaWorld gravaram um vídeo resposta ao Blackfish dizendo que este documentário é uma mentira, porém sem apresentar muitos fatos que corroborem com isto – seria preciso um vídeo bem mais longo para nos convencer de que o SeaWorld é uma entidade idônea, mas nesse caso não seria um documentário, seria uma propaganda.

John Hargrove nesta entrevista logo acima compara o SeaWorld com uma seita tal qual a Cientologia, seita também é uma palavra para descrever o cenário da série documental Tiger King. E para não deixar o assunto morrer, imparcialidade jornalística é uma ilusão, reveja a reportagem da Record News logo acima e pergunte a si mesmo se esta matéria não nos induz a amenizar a responsabilidade do SeaWorld, e nos faz acreditar que o parque tomou as devidas precauções para que este tipo de incidente não mais ocorra.

 

MENTIRAS

O documentário nos mostra o modus operandi do SeaWorld: os apresentadores diziam ao público que os animais performavam não porque eram obrigados, mas porque queriam; diziam em materiais de divulgação que todos os animais se relacionavam muito bem entre si; diziam que aqueles indivíduos constituíam uma família, porém a verdade é que se trata de um agrupamento social fabricado (como o Big Brother); guias diziam aos visitantes que as orcas viviam até no máximo 30 anos, porque tinham todos os cuidados veterinários, porém isso já foi desmistificado, estudos mostram que as fêmeas podem viver até 100 anos na natureza, e os machos até 60; os guias também diziam que 25% das baleias têm a barbatana dorsal dobrada, à medida que envelhecem (Willy, de Free Willy também tinha essa barbatana dobrada), mas a verdade é que isso acontece entre os machos em cativeiro, possivelmente pelo estresse, e entre as orcas selvagens em menos de 1%.

Como no contexto político dos dias atuais, fica o questionamento se essas mentiras eram contadas por má fé, ou por ignorância. Pelo que vemos no documentário, o SeaWorld passava as informações já prontas, seus funcionários só precisavam reproduzi-las, acreditar nelas depende de cada um. Um guia recém saído do ensino médio, com pouco conhecimento sobre a vida marinha, ingenuamente irá acreditar nas informações técnicas sobre a longevidade das orcas, ou a suposta naturalidade da barbatana dorsal dobrada, pois nesse caso, a entidade corporativa SeaWorld representa uma autoridade neste assunto. Já as alegações repetidas pelos treinadores, uma vez que a maioria deles parece arrependido no documentário, soa como uma mentira que eles usavam para iludir a si próprios.

Tudo isso segue uma agenda: vender mais. Quanto mais mágico o mundo do SeaWorld e as apresentações parecem, mais ingressos conseguem vender; quanto mais bonitinhos e fofinhos esses animais parecem, mais bichinhos de pelúcia eles conseguem vender; quanto mais eles passam a imagem de se importarem com o bem estar desses animais, mais interesse o público terá.

Uma mídia como o cinema pode promover o parque ou acabar com a sua reputação, Tubarão 3 (1983) por exemplo, se passa no SeaWorld, se o filme fosse bom, quem iria querer visitar o parque temendo ser atacado por um tubarão branco vingativo?; Free Willy consolidou a ideia de que as orcas são fofas, e que podem ser amigas, neste filme os executivos do parque são pessoas claramente gananciosas, ao passo que alguém vê o vazamento no tanque em que Willy está mas não toma nenhuma providência. Free Willy também originou uma série animada exibida tanto na Globo quanto no SBT nos anos 90, com um contexto ecofriendly; e por último, Procurando Dory (2016) passou por alterações após a repercussão de Blackfish, originalmente Destiny seria uma orca, mas foi alterada para um tubarão baleia, o filme se passaria no SeaWorld, mas foi alterado para um Instituto de Vida Marinha, e o final original teria os animais voltando ao Instituto.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo: (Foto 1) Estande de venda de bichinhos de pelúcia no SeaWorld; (Foto 2) Cena de Tubarão 3 cujo enredo se passa no SeaWorld; (Foto 3) Jesse e Willy, a amizade que quebra barreiras em Free Willy; (Foto 4) Destiny e Bailey (respectivamente um tubarão baleia, e uma beluga), personagens de Procurando Dory que viveram em cativeiro.

 

REPERCUSSÃO POSITIVA

E assim como no contexto político atual existem sites, artigos, e vídeos dedicados a tirar credibilidade do documentário, isso porque este teve uma repercussão grande e provocou uma queda de 84% do faturamento do parque. O site oficial nos dá outros exemplos da sua repercussão: Músicos cancelaram apresentações no parque após verem este filme; Ações do SeaWorld caíram 30%; Mas o mais importante é que após muita pressão, não haverá mais reprodução assistida das orcas do parque, esta é a última geração de orcas criadas em cativeiro.

Já a notícia ruim é que a trágica vida de Tilikum terminou em 6 de janeiro de 2017 com sua morte por infecção bacteriana.

Uma vez que Blackfish trouxe resultados positivos, e nos abriu a mente para esta questão da forma como esses animais são explorados, minha conclusão não é outra senão desejar ver mais documentários como este com a mesma repercussão, principalmente vivendo num país em que o governo federal atual tem tamanho descaso por este assunto.

 

* Primeira frase do clássico da literatura Moby Dick, escrito por Herman Melville e publicado em 1851. A obra relata a vida num navio baleeiro, cuja profissão embora seja monótona não deixa de ser romanceada e descrita como algo digno de respeito. Alguns capítulos são meramente informativos sobre esses mamíferos marinhos, porém tais informações já estão defasadas atualmente. Ah, e nas últimas 15 páginas (de 311) há um confronto Homem Vs. Fera.

 

** Em Madagascar (2005), após chegarem a Madagascar, Melman acha que estão no SeaWorld, Alex responde “Isso quer dizer que eu vou ter de competir com Shamu” (na versão dublada ele diz “agora eu vou ter de competir com aqueles golfinhos bonitinhos”), o fato é que Shamu era o nome de uma das orcas capturadas no incidente em Penn Cove, e faleceu em 1971. Uma orca nascida em cativeiro em 04 de novembro 1988 também foi batizada Shamu, este bebê atraiu muito público.